Com três longas-metragens e um Urso de Ouro do Festival de Berlim no currículo, a espanhola Carla Simón disputa a Palma de Ouro em Cannes com "Romería" (Romaria, em tradução livre), um filme sobre a recuperação da memória e a época da explosão da SIDA na Espanha.

Após "Verão 1993" (2017) e "Alcarràs" (2022), a cineasta de 38 anos voltou a inspirar-se na história da sua família para fazer o novo filme. Os seus pais, dependentes de heroína, morreram da SIDA quando ela era apenas uma criança.

France-Presse (AFP): Como surgiu a ideia para "Romería"?

Carla Simón: Surgiu um pouquinho da frustração que senti ao tentar reconstruir a história dos meus pais e não conseguir fazê-lo de forma saudável através dos relatos da minha família. Damo-nos conta de que a memória, as histórias que têm a ver com essa época dos anos 1980, quando a heroína teve tanto impacto, estiveram um pouco enterradas. É difícil para as pessoas falar sobre elas.

Senti que certamente nunca conseguiria entender exatamente como era. Surgiu de abraçar esta capacidade do cinema de criar as imagens que não existem, incluindo as recordações que sinto que nunca vão existir".

AFP: Como é o processo de trabalhar a partir das suas próprias vivências e recordações?

CS: O filme tem muita ficção, mas é verdade que parte das minhas próprias emoções. Para mim, era muito importante que a personagem fizesse esta viagem a partir da curiosidade, não da raiva. Muitas vezes estes filmes sobre a procura das próprias raízes são contados a partir da raiva, porque houve como uma rejeição, uma falta de amor. Nunca senti isso, sempre tive amor na minha família adotiva. Por isso, sempre o fiz a partir da curiosidade e de não esperar nada, mas para entender algo sobre os meus pais.

Quando se começa com uma personagem que não tem um conflito, é um pouco antinarrativo, mas tinha vontade de contar isto a partir da luz e para enfatizar a importância que tem para todos, acredito, entender a nossa história familiar e de onde viemos para que possamos criar a nossa própria identidade.

"Romería"

AFP: O que lhe trouxe trabalhar com as recordações?

CS: Traz, sobretudo, uma ligação muito forte com o que está a ser contado a um nível emocional, que logo é refletido no ecrã de alguma maneira. Filmar tem algo de um ato de amor, sobretudo filmar pessoas que de alguma maneira nos interessam. E como tudo isto tem a ver com a minha família... essa ligação transmiti-se também para o espectador.

E é verdade que estes filmes me ajudam a crescer porque me fazem refletir muito sobre o meu passado, a minha família e poder ver a mesma história a partir de todos os pontos de vista.

AFP: Também é um retrato daquela época.

CS: Para mim, era muito importante e, de facto, um pouco o motivo também da existência do filme, de me dar conta de que não era só a minha história, e sim de muita gente.

Depois da nossa longa ditadura, este momento de eclosão de liberdade e de transição, que todos lembramos como uma época feliz, tinha este lado B, a crise da heroína na Espanha, de como ninguém fez nada para pará-la. E foi devastador na Espanha, ou seja, foi o país com o índice mais alto de SIDA em toda a Europa.

Isto causou tanta dor nas famílias, estas perdas pelo tabu da heroína e da SIDA, que de alguma maneira esta memória foi enterrada e ficou como uma coisa de uma geração perdida. É bom recuperá-la porque, de alguma forma, também é uma memória histórica.

AFP: Com "Romería", encerra uma trilogia de memórias familiares?

CS: Sinto como um fecho. Explorei três ramos da minha família e foram muito distintas. Agora tenho vontade de explorar novos mundos porque, afinal, o que o cinema permite também é isso: explorar coisas que, de outra forma, nunca não chegaríamos a conhecer.