Com o direito ao aborto sob ameaça nos EUA, o Festival de Cannes apresentou dois filmes que destacam os riscos históricos que as mulheres enfrentaram ao passarem por procedimentos ilegais.
O documentário "The Janes" e o filme repleto de estrelas "Call Jane" retratam o grupo com o mesmo nome que nos anos 1960 ajudava mulheres grávidas em Chicago a entrar em contacto com médicos que trabalhavam às escondidas, enquanto o premiado drama "Happening" fala sobre uma jovem que arrisca tudo para abortar na França nessa mesma década.
"Tendo vivido essa época, acredite, não queremos voltar a isso", disse a atriz Sigourney Weaver, que protagoniza "Call Jane".
O festival trouxe estas produções no 49.º aniversário do caso Roe v. Wade, com o qual o Supremo Tribunal estabeleceu jurisprudência para endossar o direito ao aborto nos EUA.
Esse direito constitucional está sob ataque, num momento em que vários estados dominados pelo Partido Republicano aprovam leis que dificultam o acesso a um aborto para as mulheres.
Os defensores do direito ao aborto temem que a atual configuração do Supremo, que inclui três juízes conservadores indicados pelo ex-presidente republicano Donald Trump, restrinja ou até elimine esse direito.
Phyllis Nagy, realizadora de "Call Jane", disse que sentiu o impacto da "necessidade de contar uma história sobre as mulheres que permita outras mulheres emanciparem-se e queria fazer isso com humor, com um toque de leveza, e com certa urgência".
"Acho que há muitos filmes, porque é um tema importante. Isso é extremamente necessário para que o nosso precioso direito de escolha não desapareça de imediato", comentou.
O grupo "Jane", que surgiu no final dos anos 1960 enraizado nos movimentos dos Direitos Civis e contra a Guerra do Vietname, operou até 1973, quando o aborto foi legalizado.
Naquela época, voluntários, na sua maioria mulheres, forneciam conselhos telefónicos e ofereciam os seus apartamentos para improvisar clínicas. Usavam os seus carros para levar as mulheres grávidas e ajudavam quem não tinha recursos, angariando dinheiro para pagar essas operações ilegais.
Algumas dessas "Janes" inclusive aprenderam a realizar os procedimentos.
"Sem essas mulheres, não teria conseguido aproveitar as liberdades das quais desfrutei durante toda a minha vida", disse Elizabeth Banks, a protagonista do filme.
Vários membros do grupo foram entrevistados para a gravação do documentário da HBO "The Janes", que estreou na segunda-feira.
Entre as entrevistadas está Heather Booth, que fundou o grupo ao encontrar em médico que atendeu a irmã de uma amiga que começou a ter pensamentos suicidas depois de ficar grávida.
"Até falar sobre fazer um aborto era considerado uma conspiração para cometer um crime", lembra Booth.
Quando a decisão de Roe v. Wade foi anunciada e o seu trabalho se tornou desnecessário, vários membros do grupo foram presos e julgados.
"Estávamos emocionadas e pensámos que tinha acabado. Quem sabia o que viria depois? Pensámos que tínhamos vencido", disse outra integrante do grupo, identificada apenas como "Jeanne".
O festival de Sundance, que exibe o melhor do cinema independente, decorre até 30 de janeiro.
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