"Isto é uma chamada de atenção. É um filme sobre a América de hoje, a América de há 20 anos e, tendo em conta o que temos visto, da América de daqui a 20 anos". As palavras são de Lee Daniels e foram corroboradas pelos atores Andra Day e Trevante Rhodes, que compareceram a uma apresentação virtual à imprensa de "Estados Unidos vs. Billie Holiday", drama com estreia nacional prevista para 8 de abril.
Embora o filme se inspire no percurso da cantora de jazz que dá nome ao título, o realizador não o descreve como um biopic, antes "um pedaço de uma vida, um momento na luta desta mulher pelo seu país, e que de certa forma foi precursora da luta pelos direitos civis".
A luta fez-se na vida pessoal e nos palcos, em particular após o Senado norte-americano não ter aprovado um projeto de lei para proibir o linchamento de afro-americanos. A resposta de Billie Holiday, a partir de 1937, foi passar a incluir no seu repertório "Strange Fruit", canção composta por Abel Meeropol que compara os negros enforcados aos frutos das árvores do Sul.
No filme, Lee Daniels mostra que essa reação levou a que a artista se tornasse um alvo do FBI, que fez pressão para que o tema fosse descartado. A estratégia incluiu interferência direta na vida privada da cantora, através do aproveitamento da sua dependência de drogas e do envio de um agente, Jimmy Fletcher, para o seu círculo pessoal - e que se tornaria seu amante.
"IMAGINEMOS QUE BEYONCÉ ERA PERSEGUIDA PELA MÚSICA QUE CANTA..."
"Ela era um equivalente de Beyoncé nos dias de hoje, em termos de popularidade. Agora imaginemos que Beyoncé era perseguida pela música que canta... Este é um retrato duro da vida de Billie Holiday e um retrato duro da vida de uma mulher negra", compara Lee Daniels.
Mas apesar de determinante, o historial da artista não foi o único elemento que levou a que o realizador apostasse em "Estados Unidos vs. Billie Holiday". "Sou um artista e a única forma de que me sei expressar é através do meu trabalho", explica o realizador que já abordou questões raciais em filmes como "Precious" (2009) ou "O Mordomo" (2013) e na série "Empire".
Mais do que a história da cantora, o filme é um relato que parte "do coração da América, da vida da minha avó, da vida minha bisavó, da vida da minha filha", assinala. "Tentei colocar-me na pele do meu avô e na forma como interagia com homens brancos. O medo que ele deve ter tido de ser linchado, apesar de não ter feito nada para isso, somente por existir", recorda.
DE DIANA ROSS A ANDRA DAY
Baseado no livro "Chasing the Scream: The First and Last Days of the War on Drugs", de Johann Hari, adaptado pela argumentista Suzan-Lori Parks, o filme leva Billie Holiday ao grande ecrã depois de Diana Ross ter encarnado a cantora em "Destino de Mulher", de Sidney J. Furie. Esse biopic, estreado em 1972, está entre os títulos que marcaram a experiência de espectador de Daniels, que o viu no cinema quando era adolescente.
Foi aí, lembra, que viu pela primeira vez um retrato de época da comunidade afro-americana, incluindo cenas de amor entre um casal negro. E por isso fez questão que Andra Day e Trevante Rhodes, que interpretam a protagonista e Jimmy Fletcher em "Estados Unidos vs. Billie Holiday", respetivamente, também descobrissem esse retrato anterior.
Andra Day estreia-se, aliás, como personagem principal na representação depois de um percurso maioritariamente dedicado à música. Uma opção arriscada, mas o risco foi assumido por Daniels. "Diana Ross também nunca tinha atuado [antes de "Destino de Mulher"]. Então, porque não?", questiona. "Muitas pessoas aconselharam-me a dar-lhe uma oportunidade, e quando a vi, vi a alma de uma artista", recorda.
O realizador mostra-se igualmente orgulhoso de Trevante Rhodes, ator que muitos conheceram através de "Moonlight" (2016), de Barry Jenkins. "Ele não atua, limita-se a ser. É contido, discreto, e sentimos a sua alegria, a sua dor, sentimos tudo só pelo olhar dele. E isso é ser ator, porque é muito difícil dizer tudo só com o olhar", defende.
Como grande parte da narrativa de "Estados Unidos vs. Billie Holiday" está ancorada na relação entre as duas personagens, Daniels diz ter feito questão de não a facilitar nem para os atores nem para os espectadores. "Os atores e atrizes brancos têm personagens com várias camadas. Os atores negros, não. Por isso, e mesmo com o risco de ser criticado por alguns aspetos desta jornada, quis que este retrato tivesse camadas. (...) É uma história de amor conturbada, não é perfeita, porque as histórias de amor não são perfeitas", explica.
O resultado dessa ambição poderá ser visto nas salas de cinema nacionais em abril, depois da estreia de "Estados Unidos vs. Billie Holiday" nos EUA a 26 de fevereiro, através do serviço de streaming Hulu.
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