"No princípio não estava confiante, não queria fazer este papel. Estava aterrorizada e não queria ser terrível", confessa Andra Day, entre risos, num encontro virtual com a imprensa internacional no qual o SAPO Mag esteve presente. "Ela é a minha maior inspiração. A última coisa que queria era manchar o seu legado", explica a norte-americana ao recordar o início das filmagens de "Estados Unidos vs. Billie Holiday", drama de Lee Daniels ("Precious", "O Mordomo") inspirado na vida da cantora de "Strange Fruit" - e em particular na forma como o FBI interferiu na sua vida pessoal e profissional nos anos 1940.
"O Lee também não queria que fosse eu. Mas os nossos agentes puseram-nos em contacto e acabámos por nos entender. Ele queria contar uma história autêntica sobre a Billie, que a humanizasse", lembra ainda.
Mas se o arranque foi conturbado, não têm faltado elogios à estreia de Day como atriz num papel protagonista depois de uma breve participação musical em "Marshall" e de ter dado voz a uma personagem da animação "Carros 3".
A nomeação para o Óscar de Melhor Atriz coroou o aplauso de uma temporada de prémios durante a qual o seu desempenho não passou indiferente. Mesmo que as reações ao filme não tenham sido consensuais, a interpretação de Day está entre os elementos mais louvados. "Absorvi tudo o que podia. Não sabia que se podia chegar ao fim das pesquisas na internet, mas houve uma altura em que me indicaram que já tinha pesquisado tudo sobre ela. 'Como assim?', perguntei-me", confessa mais uma vez entre risos.
"Li todos os livros, até um sobre ela e o seu cão. Ouvi como a voz dela soava em entrevistas, como soava quando falava com a banda, nos ensaios, gravações, atuações. Cada gesto, cada expressão... E também estive com dependentes e ex-dependentes de heroína, tentei perceber quais eram os seus hábitos, como segurar na seringa... Foi muito obsessivo, mas adorei, já não era trabalho", assinala. "Mudei a minha voz para cantar como ela, embora os nossos tons sejam muito diferentes. Deixei de cuidar da voz, fumei e bebi muito, falei como ela com a minha família, o que foi um desafio".
Mas se foi difícil começar, a fase mais árdua até acabou por ser a final, garante. "Não houve dias fáceis nas filmagens. Quando se interpreta uma personagem que vai morrer, há um desespero tremendo para que as pessoas nos ouçam. Mas o mais difícil era sair das gravações. Não queria deixar os outros atores nem o Lee, nem a produção, nem Montreal. E não queria que a Billie me deixasse. Pode parecer um cliché, mas o mais difícil foi dizer adeus".
Duas mulheres negras na América
O que une Andra Day e Billie Holiday? A cantora aponta vários motivos para a mulher que encarna no filme ser a sua maior inspiração, e não apenas musical. "Sou uma mulher negra na América. Só isso já comporta uma série de traumas e invisibilidade. A Billie Holiday lutava por aquilo queria ser e que não lhe era permitido. Sinto-me inspirada pela sua resiliência e resistência, por insistir em ser quem era mesmo sabendo que isso iria matá-la", diz.
A luta da cantora de jazz fez-se na vida pessoal e nos palcos, em particular após o Senado norte-americano não ter aprovado um projeto de lei para proibir o linchamento de afro-americanos. A resposta de Holiday, a partir de 1937, foi passar a incluir no seu repertório "Strange Fruit", canção composta por Abel Meeropol que compara os negros enforcados aos frutos das árvores do Sul.
"Ouvi-a pela primeira vez quando tinha 11 anos. Estava a pedir a um professor sugestões de cantoras para ouvir e pesquisar. Era fã da Whitney Houston, da Aretha [Franklin] e queria conhecer mais. Ele recomendou-me Billie Holiday e a minha reação foi 'Quem é esse tipo? Perguntei por artistas femininas' (risos). As primeiras canções dela que ouvi foram a 'Sugar' e a 'Strange Fruit' e lembro-me de ficar muito confusa com a voz dela, porque não se assemelhava a nada que eu pensaria ser considerada uma boa voz na altura, comparada com as vozes bonitas de Whitney ou da Aretha".
A estranheza, no entanto, foi dando lugar à admiração. "Fiquei hipnotizada. O tom dela era muito diferente e na altura odiava a minha voz. Ela ajudou-me a aceitá-la porque ela também soava diferente de tudo. Ao ouvir a 'Strange Fruit', não sabia exatamente sobre o que ela estava a cantar, mas percebia que era muito importante, que se relacionava diretamente comigo e que ela se tinha sacrificado para a cantar. Ajudou-me a não ter medo de criar música que tivesse um impacto forte nas pessoas".
"Temos de contar estas histórias"
Baseado no livro "Chasing the Scream: The First and Last Days of the War on Drugs", de Johann Hari, adaptado pela argumentista Suzan-Lori Parks, o filme leva Billie Holiday ao grande ecrã depois de Diana Ross ter encarnado a cantora em "Destino de Mulher", de Sidney J. Furie. Estreado em 1972, o drama está entre os títulos que marcaram a experiência de espectador de Lee Daniels, que o viu no cinema quando era adolescente, conforme contou noutro encontro virtual com a imprensa no qual o SAPO Mag também esteve presente.
O biopic não passou ao lado de Andra Day durante a pesquisa para o seu papel, e suceder a Ross aumentou a responsabilidade, aponta. Mas a atriz diz acreditar que continua a fazer sentido revisitar a vida de Holiday no cinema.
"A primeira luta contra as drogas surgiu de questões raciais e ela era o inimigo público número 1. Foram atrás dela por cantar a 'Strange Fruit' e acabaram por ser responsáveis pela morte dela, embora ela fosse toxicodependente. E alteraram a sua narrativa para a limitarem a uma viciada problemática. Tentámos fazer-lhe justiça e retratá-la como o que realmente foi: a madrinha dos direitos civis. Fiquei muito sensibilizada com essa ideia", destaca.
"O que era muito visível naquela altura continua presente, embora mais diluído, mas é sistémico. Julgo que a maioria das pessoas não sabia do que retratamos no filme, a perseguição de que ela foi alvo pelo FBI, a infiltração no seu círculo pessoal, a forma como lutou para cantar 'Strange Fruit'. Uma grande parte do que precisa de mudar é o que tentamos fazer neste filme: temos de contar estas histórias", defende a atriz. E é peremptória ao abordar essa necessidade de mudança: "Se a América não conseguir reconciliar-se com a sua história de terror racial e opressão, para além da escravatura, não poderá seguir em frente".
Trailer de "Estados Unidos vs. Billie Holiday":
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