Um hotel abandonado de Luanda que foi palco de “um grito de revolta” e se transformou num movimento artístico é tema do documentário “Fuckin’Globo” da realizadora Kamy Lara, que hoje se estreia na capital angolana.
É o segundo documentário de Kamy Lara, 38 anos, sucedendo a “Para lá dos meus passos”, de 2019, com que a realizadora angolana conquistou prémios em vários festivais internacionais, incluindo o de Melhor Documentário no Arquiteturas Film Festival Lisboa, em Portugal, e em Angola no DocLuanda.
Foi do coletivo de artistas que partiu a vontade de fazer um filme que retratasse o evento surgido em 2015, quando decidiram ocupar os quartos de um antigo hotel na baixa de Luanda e transformá-lo em espaço de exposições.
“Foi uma resposta ao momento político que estávamos a viver, à forma como a arte estava a ser feita e utilizada pelas instituições, foi um movimento contracorrente, de rebeldia contra as instituições”, disse Kamy Lara à Lusa.
Esse ano, recordou, “foi um ano complicado” em Angola, marcado por restrições à liberdade de expressão, prisões políticas e manifestações.
Foi o ano em que se desenrolou o celebre processo dos “15+2” quando um grupo de ativistas angolanos foram presos em Luanda, num encontro em que discutiam um livro sobre a luta não violenta, e acusados de estarem a preparar um golpe de Estado.
Viviam-se também circunstâncias internacionais conturbadas enquanto Donald Trump preparava a sua ascensão para se tornar no 45.º Presidente dos Estados Unidos da América.
Em Luanda, os artistas “reclamavam um espaço de mais liberdade” e alternativo à Trienal de Luanda, um festival de arte contemporânea muito associado a figuras do regime e às instituições.
“O primeiro evento de 2015 foi tenso, as pessoas sentiam algum medo, existia mais essa tensão que hoje não se sente”, contou Kamy Lara.
“Um grito de revolta, de rebeldia” foi o que os artistas ouvidos pela realizadora angolana associaram a uma necessidade de se expressarem, não só relativamente às questões políticas e sociais, mas também artisticamente.
A relação que alguns dos artistas mantinham com aquele hotel da baixa de Luanda – alguns deles residiam e trabalhavam no edifício modernista dos anos 50 na altura já decadente e associado à prostituição – facilitou a escolha do espaço que continua ainda hoje a acolher eventos ligados à cultura.
“Ainda é um espaço com uma dinâmica bastante artística”, apesar da ameaça permanente de ser vendido, comentou Kamy Lara.
Kiluanji Kia Henda, Tho Simões, Toy Boy, Mussunda Nzombo ou Pamina Sebastião são alguns dos artistas que falam das suas experiências no “Fuckin’Globo”, com sete edições realizadas desde 2015 e suspensas desde 2021.
Kamy Lara disse que o documentário deixa em aberto um regresso do “Fuckin’Globo”, mas admitiu que a probabilidade de continuar “é baixa” até pelo facto de os seus impulsionadores não quererem que o evento “se torne uma instituição”, considerando que “fechou-se um ciclo”.
Luanda, sustentou, continua a ter um movimento intelectual e cultural interessante, embora talvez menos rebelde no sentido social e político, afirmou Kamy Lara, sublinhando que a nova geração de artistas vive um momento mais introspetivo.
“Sinto que os temas são mais internos e individuais, as coisas que estão a ser criadas hoje têm mais a ver com questionamentos pessoais, individuais, acho que faz parte do próprio momento que estamos a viver no mundo”, disse.
Depois de Angola, o documentário deverá chegar a Portugal em dezembro.
“Temos recebido muitos pedidos, não só porque há um grande numero de angolanos ligados o mundo artístico a residir em Portugal, mas também para o público português que se interessa por Angola e por arte africana. Estamos a organizar uma exibição para dezembro”, adiantou.
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