"Anatomie d'une chute" foi o vencedor da Palma de Ouro da 76.ª edição do Festival de Cannes, que nas últimas duas semanas foi uma janela para o cinema mundial, com filmes de cineastas veteranos e vozes novas.
O filme da realizadora Justine Triet, protagonizado pela alemã Sandra Hüller, que surpreendeu Cannes em 2016 com "Toni Erdmann", conta de forma sóbria a história de uma escritora alemã que tenta provar a sua inocência depois de ser acusada pelo assassinato do seu marido francês, com a Justiça obrigada a dissecar a vida de uma família reclusa na cidade remota nos Alpes em busca da verdade.
Numa edição onde muito se falou de paridade, com a presença de sete realizadoras na mostra oficial (um recorde, um terço em 21), esta é a consagração de Justine Triet, 44 anos, que já estivera na corrida à Palma em 2019 com "Sibyl" e viu o seu filme de estreia "La Bataille de Solférino" apresentado no festival no âmbito do programa ACID (que apoia cineastas independentes e destino a promover os seus trabalhos a nível internacional).
Recebido das mãos de Jane Fonda, esta é a terceira vez na história do festival mais importante do mundo que a Palma vai para o filme de uma realizadora, após a neozelandesa Jane Campion em 1993 com "O Piano" ('ex aequo' com o filme "Adeus, Minha Concubina"), e a francesa Julia Ducournau, em 2021, com "Titane".
Curiosamente, Julia Ducournau integra o júri responsável pelo palmarés, presidido pelo cineasta sueco Ruben Östlund (duplo vencedor da Palma, com "O Quadrado" e "Triângulo da Tristeza") e ainda com a presença dos atores norte-americanos Brie Larson e Paul Dano, do francês Denis Menochet, do realizador argentino Damián Szifron, da realizadora e atriz marroquina Maryam Touzani,da cineasta zambiana Rungano Nyoni e do escritor franco-afegão Atiq Rahimi.
A escolha também atesta o sucesso do cinema francês em festivais internacionais, depois do Leão de Ouro atribuído a Audrey Diwan em Veneza, em 2021, por "O Acontecimento", e do Urso de Ouro de fevereiro em Berlim para Nicolas Philibert, por "Sur l'Adamant".
"Tivemos debates intensos e divertidos. Foi cansativo no fim. O dia foi emocional", revelou Ruben Östlund na conferência de imprensa com os seus colegas após a cerimónia.
Descrevendo a mostra competitiva deste ano como "muito forte", acrescentou que "este é um filme apoiado por todos no júri. Uma coisa que saiu [das nossas deliberações] foi que estes filmes [do palmarés] criaram uma experiência coletiva. O vencedor da Palma de Ouro foi uma experiência intensa – é o que o cinema deveria ser".
Sandra Hüller também está no elenco do Grande Prémio do Júri, um "segundo lugar" no palmarés, "The Zone of Interest", do britânico Jonathan Glazer, visto como o grande favorito e que já fora premiado este sábado pela Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci).
No seu quarto filme em 2023, o realizador de "Sexy Beast" (2000), "Birth - O Mistério" (2004) e "Debaixo da Pele" (2013), arrepiou Cannes e tornou-se um dos favoritos com a adaptação de um romance do recentemente falecido Martin Amis sobre a "banalidade do mal", retratando a vida quotidiana de Rudolf Hoss, e da sua família, numa confortável casa com um enorme jardim ao lado de campo de extermínio de Auschwitz onde ele era o comandante.
O Prémio do Júri, o terceiro lugar, foi para "Fallen Leaves", de Aki Kaurismaki, que conta a história de amor impassível que nasce entre uma funcionária de balcão e um funcionário do serviço de limpeza num mundo quotidiano sem amor, onde despachos da guerra na Ucrânia tocam regularmente na rádio. O cineasta finlandês, que chegara a anunciar a reforma artística, regressa assim ao palmarés 21 anos depois do Grande Prémio conquistado com "O Homem Sem Passado" (2002).
Em "casa" ficou o prémio de Melhor Realização para Tran Anh Hung por "La Passion de Dodin Bouffant" (França): o cineasta de origem vietnamita venceu a secção Câmara de Ouro de Cannes em 1993 (que distingue uma primeira obra apresentada em qualquer secção do festival) com o saudoso "O Odor da Papaia Verde" e agora regressa ao grande plano com um filme protagonizado pelas grandes estrelas Juliette Binoche e Benoît Magimel com uma história ambientada no fim do século XIX que mostra a relação entre uma famosa cozinheira e o gourmet para quem trabalhou nos últimos 20 anos.
Dois veteranos de Cannes viram os filmes distinguidos pelas interpretações: Melhor Ator foi para Koji Yakusho em "Perfect Days", do veterano cineasta alemão Wim Wenders, vencedor da Palma de Ouro com "Paris, Texas" em 1984, que filmou no Japão a história de um empregado silencioso e solitário das casas de banho públicas de Tóquio que coleciona cassetes de clássicos do rock; Melhor Atriz distinguiu Merve Dizdar em "About dry grasses", de Nuri Bilge Ceylan, o cineasta turco que recebeu a Palma em 2014 com "Sonho de Inverno", e que apresentou a história de um professor que enfrenta acusações de assédio sexual.
No caso de Koji Yakusho, de 67 anos, é a consagração internacional de um dos atores mais famosos do Japão, em filmes populares e de autor, desde "Dançamos", de Masayuki Suo (1996), a "Sleeping Man", de Kohei Oguri, e "O Terceiro Assassinato", de Hirokazu Kore-eda (2017), além do protagonismo em "A Enguia", de Shôhei Imamura, Palma de Ouro em 1997.
Para "Monster" foi a distinção para o Melhor Argumento de Yuji Sakamato: outro prémio para um filme de Hirokazu Kore-eda, Palma de Ouro em 2018 com "Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões" (2018) e Prémio do Júri em 2013 com "Tal Pai, Tal Filho", que desta vez relata a história de crianças numa escola marcada por um incidente.
Dos 21 filmes aspirantes à Palma, havia mais dois de antigos vencedores, mas saíram sem prémios: o júri ignorou "The Old Oak", do britânico Ken Loach, e "Il sol dell'avvenire", de Nanni Moretti.
Fora do palmarés ficaram ainda os novos filmes de cineastas como Todd Haynes ("May December"), Wes Anderson ("Asteroid City), Marco Bellocchio ("Rapito"), Alice Rohrwacher ("La Chimera"), Jessica Hausner ("Club Zero"), Karim Aïnouz ("Firebrand"), Catherine Corsini ("Le Retour"), Catherine Breillat ("L'Été dernier") e Wang Bing ("Youth (Spring)").
Quanto ao cinema nacional no evento, o único filme premiado foi “A Flor do Buriti”, do cineasta português João Salaviza e da realizadora brasileira Renée Nader Messora, na secção Un Certain Regard, que recebeu na última sexta-feira o prémio de Melhor Equipa, que inclui inclui os realizadores, o elenco e a equipa técnica.
O PALMARÉS
PALMA DE OURO
"Anatomie d'une chute", de Justine Triet (França)
GRANDE PRÉMIO
"The Zone of Interest", de Jonathan Glazer (Reino Unido)
PRÉMIO DO JÚRI
"Fallen Leaves", de Aki Kaurismaki (Islândia)
REALIZAÇÃO
Tran Anh Hung por "La Passion de Dodin Bouffant" (França)
INTERPRETAÇÃO FEMININA
Merve Dizdar por "About Dry Grasses", de Nuri Bilge Ceylan (Turquia)
INTERPRETAÇÃO MASCULINA
Koji Yakusho por "Perfect Days", de Wim Wenders (Japão, Alemanha)
ARGUMENTO
Yuji Sakamato por "Monster", de Hirokazu Kore-eda (Japão)
SECÇÃO CÂMARA DE OURO (distingue uma primeira obra apresentada em qualquer secção)
"Inside the Yellow Cocoon Shell", de Thien An Pham (Vietname)
SECÇÃO CURTAS-METRAGENS
Palma de Ouro
"27", de Flóra Anna Buda (França, Hungria)
MENÇÃO ESPECIAL
"Fár", de Gunnur Martinsdottir Schluter (Islândia)
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