A revista Elle chama-lhe "uma provável coincidência que deixa perguntas por responder": a primeira atriz a acusar publicamente Gérard Depardieu de assédio sexual suicidou-se a 7 de dezembro, o mesmo dia em que foi exibida pelo principal canal da TV francesa uma reportagem sobre os comportamentos problemáticos com as mulheres daquele que é conhecido, pelo talento e físico, como o “Monstro”.
Segundo a imprensa francesa, Emmanuelle Debever, que tinha 60 anos, atirou-se ao rio Sena.
Em 1982, era uma jovem "starlett" promissora a dar os primeiros passos da carreira, com a estreia na popular telenovela "Joëlle Mazart" e um primeiro filme, "Douce enquête sur la violence".
No ano a seguir, já se destacava em "Un jeu brutal", de Jean-Claude Brisseau, como a filha tetraplégica que resistia às diretrizes impossíveis do pai severo interpretado por Bruno Cremer, e surgia ao lado de Gérard Depardieu em "Danton", do realizador polaco Andrzej Wajda.
Uma rodagem que deixou más recordações por causa do comportamento do seu parceiro de cena, no auge da sua popularidade como estrela, que denunciou na sua página do Facebook a 5 de junho de 2019.
O depoimento, agora muito citado mas recebido com relativa indiferença na altura pela comunicação social, faz com que Emmanuelle Debever seja considerada a "primeira acusadora pública" de Depardieu, uma vez que a atriz Charlotte Arnould só assumiu no final de 2021 a autoria da batalha legal iniciada em agosto de 2018 em que alega que o ator, amigo da família, a violou duas vezes.
Partilhando uma fotografia dos dois no filme, Emmanuelle Debever, que colocou um ponto final na carreira alguns anos depois, escreveu: "Senhor Depardieu. Hoje absolvido de violação e agressão sexual. Sem comentários. 'Danton' de Wajda. Interpretei Louison, a jovem esposa de Danton. O monstro sagrado permitiu-se muitas coisas durante as filmagens. Aproveitando a privacidade dentro de uma carruagem. Deslizando a sua pata grande por baixo da minha saia, supostamente para me fazer sentir melhor. Eu a tentar impedi-lo. Aqui [na foto], com os olhos fixos no cadafalso, uma cabeça estava prestes a cair. Daí o meu olhar".
A alegação foi incluída na reportagem "Gérard Depardieu: La chute de l'ogre" ("A Queda do Ogre", em tradução literal) do canal France 2, que aborda as várias acusações a envolver a estrela de 74 anos.
Também são mostradas imagens de uma viagem à Coreia do Norte em 2018 onde fez repetidamente comentários sexuais explícitos na presença de uma intérprete feminina e sexualiza uma menina pequena a andar a cavalo.
Durante mais de um ano após várias acusações de violação, a indústria cinematográfica francesa encolheu os ombros e a lenda com mais de 200 títulos em seu nome continuou a trabalhar.
Mas as crescentes acusações de assédio sexual este ano, incluindo as de mais 13 mulheres numa reportagem do 'site' de investigação Mediapart em abril, e as recentes imagens com os comentários obscenos, estão finalmente a forçar um debate sobre o sexismo e a violência sexual no cinema nacional, seis anos após o início do movimento #MeToo em Hollywood, que derrubou o produtor Harvey Weinstein.
“Haverá um pós-Depardieu, isso é claro”, disse a ativista Laura Pertuy.
“A todos os níveis, em todas as gerações, as pessoas estão a começar a falar, a dizer basta, o sistema não pode continuar assim”, disse a secretário-geral da Collectif 50/50, uma associação que promove a igualdade de género no cinema.
A reportagem desencadeou alguma autorreflexão.
“Somos todos um pouco culpados”, reconheceu Marc Missonnier, presidente do sindicato dos produtores de cinema da França.
“Havia uma tolerância e isso foi um erro”, acrescentou na entrevista ao canal France 2.
Anouk Grinberg, que conhece Depardieu há décadas, falou pela primeira vez em outubro.
"Qualquer pessoa que já trabalhou com ele sabe que ataca as mulheres”, disse a atriz de 60 anos à revista Elle, mas notando que as pessoas não o denunciaram por medo de que isso prejudicasse as suas carreiras.
"Todos permitiram que ele fosse um monstro", disse à rádio France Inter já esta na segunda-feira.
Ela apelou para o fim da “outra monstruosidade [...], aquela das pessoas do cinema que são indiferentes ao mal sofrido pelas mulheres, às humilhações que lhes são infligidas”.
Depardieu tem negado repetidamente ter cometido qualquer crime.
“Nunca abusei de uma mulher”, escreveu ele no jornal Le Figaro em outubro.
Em outubro, o ator, nomeado para um Óscar por "Cyrano de Bergerac" (1990) e conhecido mais recentemente pela série "Marselha", da Netflix, colocou a carreira em pausa.
“Não deveríamos celebrar... Depardieu”, disse à France 2. um porta-voz da France Televisions, a organização de canais públicos.
Mas o grupo disse à France-Presse na segunda-feira que “os filmes com... Depardieu continuarão a ser comprados e transmitidos”, pois incluem “obras-primas”.
Um deles, o premiado "Ilusões Perdidas" (2021), de Xavier Giannoli, será exibido na France 2 no domingo.
Depardieu não é a única figura do cinema francês acusada de má conduta, mas é a mais proeminente.
Sob pressão de ativistas e das autoridades, surgiram diversas iniciativas para prevenir a violência sexual. Os sets das rodagens empregam cada vez mais "treinadores de intimidade" para garantir que os atores se sintam confortáveis durante as cenas de sexo. E desde 2021, o Centre national du cinéma et de l’image animée (CNC) condicionou a ajuda financeira a cursos de prevenção do assédio sexual.
A atriz Adèle Haenel, que já havia denunciado a “dominação” que sofreu quando adolescente por parte do realizador Christophe Ruggia, anunciou em maio o abandono do cinema devido à “indulgência” da indústria com as agressões sexuais.
E as feministas apontam que Dominique Boutonnat, o diretor do CNC, que deveria estar a conduzir a indústria para um rumo melhor, foi ele próprio acusado de agredir sexualmente o seu afilhado de 21 anos em 2020, uma alegação que ele nega.
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