A drástica política de austeridade do presidente Javier Milei, que impactou duramente o setor cultural, levou a Argentina a uma "situação extrema", avaliou, na quarta-feira, em entrevista à France-Presse (AFP), a cineasta Lola Arias, que apresentou um musical 'sui generis' no Festival de Cinema de San Sebastián.
"É uma situação extrema como nunca vivemos (...), não só para o cinema, mas para a sobrevivência de imensas pessoas na Argentina, que são empurradas por este Governo a viver abaixo do limiar da pobreza", ressaltou Arias.
"Tem sido muito brutal porque o Governo de Milei (...) foi destruindo tudo, destruindo todas as políticas públicas em relação às universidades públicas, cortando o financiamento aos hospitais públicos e à cultura", continuou a realizadora.
Num contexto de grave crise económica, Milei assumiu a Presidência em dezembro com o objetivo de cortar drasticamente as despesas.
Para o cinema, o golpe impactou o instituto que o fomenta, o INCAA, com um corte que se traduziu na suspensão de programas de apoio e na demissão de funcionários, o que virtualmente o deixou paralisado.
A situação é muito criticada por representantes da indústria cinematográfica, tanto dentro do país quanto no exterior, como no Festival de Cannes, em maio, e no de San Sebastián, esta semana.
Arias participou na terça-feira de um ato em solidariedade ao cinema argentino no Kursaal, sede principal do evento nesta cidade do norte da Espanha, onde vários realizadores argentinos alertaram para o perigo de que caia o número de filmes feitos na Argentina.
Trata-se de "uma situação realmente inédita, que se destrua tudo o que pode produzir uma imagem do país, um futuro para muitos artistas e também uma indústria porque realmente o cinema argentino dá trabalho a imensas pessoas", destacou Arias na entrevista.
A música como resistência
Arias, que também é dramaturga, apresentou em San Sebastián a sua segunda longa-metragem, "Reas" ("Rés", em tradução livre), que disputa o prémio de melhor filme latino-americano na mostra Horizontes.
O projeto nasceu durante um curso de cinema e teatro que ela ofereceu na prisão feminina de Ezeiza, em 2019, onde conheceu Yoseli Arias, que acabaria por ser a protagonista.
Veio a pandemia de COVID-19 e com ela a impossibilidade de visitar a prisão, razão pela qual Arias começou "a oferecer oficinas para pessoas que já tinham deixado a prisão, e ao longo destes anos, foi-se formando o grupo" de 14 mulheres que completaram o elenco do filme.
O filme, que conta a vida numa prisão feminina, é uma mistura peculiar de drama musical e ficção documental, pois as histórias contadas pelas ex-detidas, que usam os seus nomes reais, são verdadeiras.
A ideia de incluir partes musicais veio do facto de que duas pessoas, "Estefy e Nacho, que era um rapaz trans, tinham uma banda rock na prisão que se chamava 'Sin Control' [Sem controle] e faziam espetáculos", explicou Arias.
"Comecei a ver através deles e da sua banda que a música é uma ferramenta de resistência dentro da prisão e que a música é, de alguma forma, o que gera coesão", assinalou.
Sem perfeição, mas com glamour
Diferentemente dos musicais tradicionais, que retratam os "mundos marginais de uma forma romântica", aqui, as ex-detidas "contam e reconstroem a sua história, e dançam e cantam, talvez não com a perfeição de um bailarino profissional, mas com muito glamour e beleza", disse.
Para estar no filme, as mulheres, que em muitos casos não conseguiam emprego, nem tinham acesso à Segurança Social, foram contratadas, o que representou "uma mudança de vida muito grande", detalhou.
Agora, as mulheres também participam numa peça de teatro de Arias, "Los días afuera" [Os dias do lado de fora], sobre a vida em liberdade, que atualmente está em digressão pela Europa.
Para Arias também foi muito especial que as mulheres pudessem viajar para San Sebastián para apresentar o filme, uma obra que "impactou as suas vidas e lhes deu uma esperança, uma visão para o futuro".
Comentários