O filme “A Flor do Buriti”, do cineasta português João Salaviza e da realizadora brasileira Renée Nader Messora, foi premiado esta sexta-feira com o prémio de Melhor Equipa na secção Un Certain Regard da 76.ª edição do Festival de Cinema de Cannes.
O prémio anunciado na sala Debussy do festival na cidade do sul da França inclui os realizadores, o elenco e a equipa técnica.
É a segunda vez que os cineastas são premiados nesta mostra paralela: em 2018, o seu primeiro filme, "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos", que já tratava da comunidade Krahô, recebeu o Prémio do Júri, o equivalente ao segundo lugar.
Para João Salaviza, esta é a terceira vez que é premiado: recebeu a Palma de Ouro de Melhor Curta-Metragem com “Arena” em 2009.
O palmarés foi anunciado esta sexta-feira ao fim da tarde na sala na sala Debussy do festival na cidade do sul da França pelo júri presidido pelo ator norte-americano John C. Reilly e que incluía a atriz alemã Paula Beer, o cineasta franco-cambojano Davy Chou, a argumentista francesa Alice Winocour e a atriz belga Émilie Dequenne.
O prémio principal foi para o filme britânico "How to Have Sex by Molly", de Manning Walker.
O cinema de Marrocos foi favorecido com o Prémio do Júri para "Les Meutes", de Kamal Lazraq, e a Melhor Realização para Asmae El Moudir, por "Kadib Abyad" ("The Mother of All Lies").
O Prémio da Liberdade foi para "Goodbye Julia", de Mohamed Kordofani, uma co-produção internacional que junta Sudão, Egito e Arábia Saudita com França, Alemanha e Suécia.
O Prémio Nova Voz foi para o filme "Augure", de Baloji Tshiani, da Bélgica e República Democrática do Congo.
Sem títulos portugueses na corrida, os premiados da secção competitiva, com destaque para a Palma de Ouro, serão conhecidos no sábado à noite, último dia do festival, antes da sessão de encerramento com “Elemental”, o filme de animação da Pixar de Peter Sohn.
Tomada de consciência política
Com estreia comercial em Portugal a 14 de março de 2024, "'A Flor do Buriti' atravessa os últimos 80 anos dos Krahô, dando a conhecer ao espectador um massacre ocorrido em 1940, onde morreram mais de dezenas indígenas. Perpetrado por dois fazendeiros da região, as violências praticadas naquele momento continuam a ecoar na memória das novas gerações”, lê-se na sinopse.
Salaviza e Messora documentam o passado, o presente e os desafios para o futuro deste povo indígena do Cerrado brasileiro.
O nome do novo filme faz referência à flor do buriti, um tipo de palmeira selvagem que cresce no Brasil, e que se encontra no meio da comunidade Krahô, no norte do estado brasileiro do Tocantins.
O local é um bioma fechado - menos húmido do que a Amazónia - que se tornou a região mais devastada pela desflorestação no Brasil, como os dois realizadores afirmaram, em entrevista à agência EFE.
No comunicado de imprensa sobre a obra, João Salaviza e Renée Nader Messora lembram que, atualmente, "diante de velhas e novas ameaças, os Krahô seguem caminhando sobre a sua 'terra sangrada', reinventando diariamente as infinitas formas de resistência".
"O que buscamos é traduzir a sensibilidade, a poesia, a beleza dos Krahô e colocá-la em imagens, em som, em edição" disse Salaviza em entrevista à France-Presse na terça-feira.
"Não é um cinema ativista, mas sim um cinema profundamente político", garantia o corealizador do filme, que está no meio do caminho entre o documentário e a ficção e no qual os Krahô recriam a sua própria vida.
A sua sobrevivência está em jogo no Cerrado, bioma de enorme biodiversidade pressionado pela pecuária e pelo governo hostil de Jair Bolsonaro, que estava no poder quando o filme foi rodado.
No dia da estreia, a equipa aproveitou a passagem pela passadeira vermelha para mostrar a sua oposição à tese jurídica do Marco Temporal, sobre a demarcação de terras indígenas, defendida pela direita brasileira, atualmente em discussão no Supremo Tribunal Federal daquele país, erguendo os punhos e desfraldando uma faixa onde se lia "O futuro das terras indígenas está ameaçado. Não ao Marco Temporal!".
Esta tese, apoiada por grandes fazendeiros e líderes do agronegócio, propõe que o direito à terra dos povos nativos deve ser limitado às áreas sob o seu controlo em 05 de outubro de 1988, quando a atual Constituição brasileira foi promulgada.
Para os manifestantes, citados por agências de notícias, esta "é uma tese perversa que legaliza e legitima a violência a que os povos foram submetidos até à promulgação da Constituição de 1988, especialmente durante a ditadura militar".
"Crowrã", uma coprodução entre Brasil e Portugal, é o resultado de 15 meses de filmagens e da vivência dos realizadores em quatro aldeias diferentes desta terra indígena, uma região que ambos conhecem a fundo e onde vivem há anos.
"Sabíamos mais ou menos o que queríamos contar, mas não tínhamos ideia de como iríamos conseguir e isto foi sendo construído com eles", os indígenas, aponta Nader Messora, que propõe um cinema "muito aberto" em colaboração com os seus protagonistas.
O filme, apresentado na mostra paralela Un Certain Regard, traz também o distanciamento dos Krahô das suas tradições, desde um pai que muda da caça para o supermercado até à renúncia dos homens a ficarem nus nas celebrações tradicionais.
"Não é que haja exatamente uma perda [cultural], acredito que há uma reconfiguração [...] Eles aproveitam o que lhes serve e descartam muito do que não lhes serve das novidades trazidas pelos não indígenas", chamados 'cûpe' na sua língua, aponta Renée Nader Messora.
"Crowrã" mostra também a tomada de consciência política dos Krahô, quando alguns deles decidem viajar a Brasília para uma grande mobilização dos indígenas contra o governo Bolsonaro.
"Entenderam que há muitas frentes de batalha e uma delas é aprender a ocupar os espaços de poder", afirma Salaviza, que descreve a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência este ano como "uma mudança de mundo".
O filme acompanha vários personagens, como Jotàt, uma menina que incorpora os fantasmas dos seus antepassados que a fazem lembrar de um massacre ocorrido nos anos 1940.
Enquanto isso, Hyjnõ, o guardião da aldeia, luta para evitar as incursões ilegais dos 'cûpe' que roubam araras nas suas terras para depois vendê-las na cidade.
A produção também conta com a participação de Sônia Guajajara, ministra da nova pasta de Povos Indígenas, "um foco de esperança" segundo Salaviza, que não hesita em classificar de "regime" os anos da presidência de Bolsonaro.
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