Paris é um sítio algures perdido no estado americano do Texas, um sonho para onde Travis caminha há muitos anos. Wim Wenders conta a história de um homem resgatado à sua própria solidão, que tenta reparar os erros da vida. Sem desassossegos ou assombros, “Paris, Texas” é um filme comovente sobre deixar uma marca no mundo. Antes que o tempo se esgote.
Passam mais de 20 minutos de filme até ouvirmos a voz de Harry Dean Stanton. Ele é Travis no filme de Wim Wenders, de 1984. É um homem maltrapilho, que deambula pelas terras áridas do deserto de Mojave. De boné vermelho, barba, procura água que lhe mate a sede mas tomba quando a encontra. O homem que lhe dá cuidados entrega-o ao irmão.
Walt (Dean Stockwell) não vê Travis há quatro anos. Tanto Travis como a sua mulher, Jane (Nastassja Kinski), desapareceram sem deixar rasto, deixando o filho, Hunter (Hunter Carson), com os cunhados. Quando Travis reaparece nas suas vidas, depois de um périplo difícil do deserto até aos subúrbios de Los Angeles, Anne (Aurore Clément) teme ficar sem a criança, que aprendeu a tratar os tios como pais.
Walt e Anne são exímios exemplares de apoio familiar. Travis recebe o irmão com aquele longo silêncio e quando retoma as palavras não usa nenhumas para explicar por onde andou durante aqueles anos. Walt, por sua vez, dá tudo ao irmão, dá-lhe as botas de cowboy que Travis lhe pede, não fosse esta uma história passada dentro do imaginário dos filmes americanos, com cheiro a western. Que não se pense neste filme como uma história de cowboys e malfeitores. Wim Wenders dá-lhe algo de mais profundo. E Sam Shepard, pelo guião, torna “Paris, Texas” numa bonita narrativa sobre a inevitabilidade da vida.
A dor e o sofrimento das personagens (que afastaram Travis e Jane) não suscitam rancores. Não há discussões acesas, palavras ásperas. Não há dor por resolver. Há esperança e vontade de retomar a vida suspensa. Movido por essa missão, Travis tenta recuperar o afeto do filho, sem lhe cobrar nada, esperando que a criança não queira nada com ele, apenas para ser rapidamente recebido de braços abertos por Hunter. (De braços abertos é exagero estilístico, porque as personagens quase não se tocam. Há afeto nesta história, é palpável. Mas as personagens não são expansivas e deixam que o subtexto fale por si.)
Nesta primeira tentativa de se reencontrar com o filho, Travis espera-o à porta da escola, vestido a rigor para impressionar, segundo os conselhos da empregada latina do irmão, que lhe explica que um pai caminha com o rosto erguido, com dignidade. Então, Travis e Hunter protagonizam uma das cenas mais bonitas e simples de “Paris, Texas”. Separados pela estrada que os conduz a casa, caminham cada um no seu passeio. A distância daqueles quatro anos é literal. Mas Hunter começa a dar espaço a Travis e vai copiando os movimentos do pai, do outro lado da estrada. Aquela brincadeira traquina sela a relação entre pai e filho. Esperamos que esta aproximação vá provocar um colapso de Anne e mesmo de Walt, mas as personagens aceitam – com dignidade – o desenrolar natural dos acontecimentos, que é como quem diz, a forma como a vida acontece.
O segundo passo no regresso de Travis ao mundo dos vivos (como lhe diz o irmão) é Jane. O homem irá explicar que foi sua a culpa da separação da família e que é seu dever devolver Hunter a Jane. Pai e filho partem para Houston, onde Travis encontra Jane num bar noturno. Ela conversa com os clientes, despe-se para eles, por vezes, e Travis preocupa-se que exista algo mais. Numa cabine, separados com um vidro espelhado, ela vê o seu reflexo, enquanto ele vê a esposa. Falam, mas Jane não reconhece a voz de Travis, até que este lhe conta a história de duas pessoas que se conheciam e que se perderam um do outro.
A história, claro, é a de Travis e Jane. Ela, de cabelo muito loiro, camisola escura sem costas, escuta de olhos muito abertos. Ao aperceber-se do seu interlocutor, diz simplesmente “oh, Travis”. A emoção é contida, não há gritos nem arrependimentos sonantes. Quando reencontra Jane naquela cabine escura, Travis deixa cair uma lágrima lenta pela face. Agora, o seu rosto está mergulhado num misto de tristeza e satisfação – afinal, está perto de devolver o filho à mãe.
O que se passou durante aqueles quatro anos? Travis conta como Jane procurava a fuga da vida familiar infeliz. Ele bebia muito, até que a notícia da gravidez chegara. Ela deixou-se tomar por uma depressão, a contrastar com a alegria daquele filho. Uma noite, ele apercebeu-se de que a mulher tentava fugir e prendeu-a ao fogão, apenas para acordar mais tarde numa casa vazia, em chamas. E correu. Correu para longe, para um sítio sem linguagem, como ele mesmo diz. O silêncio, esse, encontrá-lo-ia de certeza naquela localidade perdida no Texas, de nome Paris, onde um dia tinha comprado um terreno vazio.
Travis repete a história de como o seu pai contava, com graça, que a mulher era de Paris. Pausa. Texas. E que tinha sido ali, na localidade texana, que ele próprio começara, ali tinha sido concebido. Este homem chega-nos a deambular ao acaso pela vida. Dá sentido à sua existência ao cumprir aquela missão. E depois desaparece na noite, do lado de fora do hotel onde assiste ao reencontro entre Jane e Hunter. Travis só sabe onde começou, não sabe para onde vai, mas tem de continuar. É uma personagem a atravessar o tempo, embora, para si, o tempo tenha tido uma interrupção de quatro anos. Harry Dean Stanton contou que este papel lhe chegou de forma curiosa, quando, ao falar com o argumentista, lhe disse que queria fazer algo com sentido. Quando Sam Shepard o convidou para interpretar Travis, semanas depois, aceitou o convite, como se ele tivesse chegado de forma natural, óbvia, e apesar da preocupação por ser 35 anos mais velho do que Nastassja Kinski.
O casal é credível, sobretudo naquelas filmagens em Super 8 que Walt mostra ao irmão para lhe avivar a memória. São imagens de outros tempos, quando a família era feliz e as cores eram tão vivas que falam por si. Os vermelhos são fortes e esta é uma cor que vamos encontrar ao longo do filme. O pequeno Hunter é uma criança de cabelo muito loiro, tão loiro quanto o de Jane.
É esta simplicidade que tornam “Paris, Texas” um filme tão verdadeiro. Sem uma narrativa elaborada, fascina. Sem artifícios ou encenações rocambolescas, comove. Sem dramatismos nem excessos, emociona.
Tudo funciona numa mecânica perfeita em “Paris, Texas”. Wim Wenders introduz planos impregnados de beleza e simplicidade, como quando Travis está parado, olhado de baixo pela câmara, antes de retomar a marcha quando o ângulo se desloca para o seu lado. É enternecedora a delicadeza de Stanton, na cabine, quando lentamente roda a cadeira de costas para Jane, para começar a contar-lhe a história sem suportar ver a imagem do que se tornou a sua mulher. Os acordes de Ry Cooder, que acompanham todo o filme, lembram aquele assobio que Morricone escreveu para Clint Eastwood em “O Bom, O Mau e O Vilão”.
Talvez por estas características – a que se deve juntar as distintas interpretações dos atores – “Paris, Texas” ficou na história do cinema como um clássico do imaginário de quem o viu naqueles anos 1980. Na história de Wim Wenders, é um capítulo em que se encontra frequentemente o debate da nacionalidade do cinema do realizador alemão. É que Wenders não era capaz de fazer um filme americano, dizia-se. E, com “Paris, Texas”, teria sido capaz de entregar um filme sobre a América profunda (a da solidão e dos vazios metafóricos para as fendas que a vida vai cavando).
O debate é pouco interessante, perante a beleza inerente ao filme. Até porque a solidão não tem fronteiras e Travis continuará a atravessar o tempo em busca daquele terreno vazio, que um dia comprara com a intenção de ter uma vida feliz, em família, com a mulher e o filho.
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