25São pouco mais de 30 planos nestas duas horas e meia de filme. Béla Tarr é perito em prolongar as cenas até ao limite da exaustão do espectador. E o que é que há para lá do limite? Em “O Cavalo de Turim” (2011), há uma conclusão concreta sobre a finitude do Homem. Para lá desse limite, das repetições monótonas e do silêncio absurdo, há uma angústia asfixiante que se prolonga tanto quanto aquele vento continua a assobiar-nos nos ouvidos, depois de o pano escuro descer sobre a tela.
Béla Tarr anunciou a sua despedida da realização com “O Cavalo de Turim”, um conto desdobrado em sete capítulos (sete dias) sobre o fim do mundo. A redução é redutora mas a leitura é à vontade do espectador, porque o que se diz neste filme é muito pouco. Passam cerca de 20 minutos desde que o narrador nos iniciou na história até que uma das personagens tome a palavra.
Disse o narrador que Friedrich Nietzsche, em viagem por Turim, encontrara um homem e o seu cavalo. O homem forçava de forma violenta a obediência do cavalo, sem sucesso, e o episódio teria provocado uma comoção tal no filósofo que ele caíra em doença, delírios e silêncio dos 10 anos seguinte da sua vida, os últimos. No filme do húngaro Béla Tarr, existe um cavalo desobediente, que acaba por invalidar as hipóteses de fuga das duas personagens.
Estamos perante um pai e uma filha: ele, debilitado por um AVC que lhe retirara alguns movimentos; ela, lida com as tarefas pesadas da casa e cuida do homem. Essas tarefas começam ao raiar do dia. Vai buscar água ao poço junto a casa, ajuda o pai a vestir as suas roupas pesadas, serve-lhe dois copos de uma bebida que será provavelmente pálinka húngara (e um para si), coze duas batatas – uma para cada – que são a única refeição do dia. Estas tarefas repetem-se um sem número de vezes. Tarr não poupa o espectador, bem pelo contrário. A sua intenção é demorar o mesmo tempo em cada ação, assim como na vida real. A filha ajuda o pai a vestir as meias, as calças, a camisa, o colete e o casaco. Alguns momentos depois, finda o dia, e ela ajuda-o a despir o casaco, o colete, a camisa, as calças e as meias. Com uma palavra seca e rápida, anuncia que a refeição está pronta. O pai senta-se na mesa e, com o único braço que consegue mover para qualquer ação, descasca a pele da batata cozida a escaldar. Aquele ritual repete-se novamente: com os dedos a queimar na batata acabada de cozer, o pai vai esfarelando pedaços que coloca na boca. Tira a pele esgravatando a batata com os dedos, arranca pedaços, sopra, queima-se, come. E repete.
Tudo isto acontece ao som de um vendaval constante, uma tempestade que é o indicador de que algo não está bem. Não fosse esse vento ensurdecedor, não teríamos consciência do perigo que se aproxima, porque as duas personagens arrastam-se por aquela rotina com uma monotonia contagiante. Até que lhes chega um visitante, um viajante que é a personagem que mais fala em todo o filme. A visita informa-os de que a cidade próxima está em vias de desaparecer. O anúncio do apocalipse é recebido pelo pai com três ou quatro palavras despreocupadas, mas a verdade é que a mensagem é retida.
O viajante palavroso, qual Nietzsche de passagem, diz-lhes que a ganância das pessoas porá fim à civilização. Diz-lhes que não haverá nada, em breve. Anuncia que a extinção se aproxima, que Deus ou os deuses se finaram, porque os homens de poder, que são donos de tudo – do céu, dos sonhos e até do silêncio –, destroem tudo. Destroem para poderem adquirir tudo.
No conteúdo do monólogo, encontramos Nietzsche e vale a pena dizer que Béla Tarr ambicionava tornar-se filósofo, antes de enveredar pelo cinema. A história que o narrador apresenta no início, em jeito de fábula, está presente na figura do cavalo. Depois da visita do viajante, pai e filha tentam partir para outra cidade, como que a fugir de um manto de escuridão que se aproxima. O cavalo – que se recusa a beber água e a comer – não se mexe, mais uma vez.
Resignados, pai e filha regressam a casa para aceitar o destino que sabem que os espera. O vento continua a açoitar a casa com uma violência castigadora, ao longo dos sete dias em que ali estamos – embora sem consciência do que é noite e do que é dia nas imagens a preto e branco do filme, limitando-nos à informação de que passou mais um dia.
A angústia toma o espectador de assalto, porque, até ali, o que se sobrepôs foi a repetição das rotinas. Apercebemo-nos de que a intenção do realizador é fazer com que o espectador desça à realidade das personagens e entre nas suas vidas sem a fuga que o tempo do filme permite, normalmente. Assim, observamos as personagens a assistirem ao que lhes acontece, quase impávidas perante o destino, perante a sucessão dos dias.
Béla Tarr não tem problemas com repetições, cenas longas, travellings demorados e edições poupadas. Em 1994, lançou “Sátántangó”, filme com sete horas e meia – calculadas para o mesmo tempo que deveria tomar a leitura do livro que lhe serviu de base. Este é um dos melhores filmes de sempre, para a Sight & Sound. “O Cavalo de Turim” também foi considerado uma obra-prima.
Para isso, terão contribuído certamente dois elementos de que importa falar. Enquanto o vento nos uiva nos ouvidos, há uma música dramática que dá intensidade ao filme, além de nos ocupar aquela parte da atenção que busca ansiosamente o diálogo. A música é do compositor húngaro Mihály Víg, que já trabalhara com Tarr em Sátántangó e também em “Werckmeister Harmoniak” (2000). A realização também merece algumas palavras, já que insiste na repetição das cenas mas vai mudando o ângulo de abordagem às mesmas e, a dada altura, o espectador parece saltar entre o ponto de vista de cada personagem, na penumbra daquela casa fria. Uma das cenas é mesmo filmada do lado de fora da casa, um espaço que conhecemos só quando a filha vai buscar água ao poço ou quando tenta convencer o cavalo a ser útil.
Na última cena do filme, está escuro, tão escuro que parece que o realizador se permite um pouco de luz só para que o espectador possa inteirar-se do que se passa. E o que se passa é que pai e filha estão sentados na mesa de madeira onde antes partilharam as refeições. A filha está impávida, entregue à inevitabilidade do seu desfecho. Não há luz, o poço ficou sem água, a lenha acabou. O pai vai esgravatando a casca da batata crua que tem à sua frente, num gerúndio que não termina mas também não altera o seu ritmo. É angustiante ver esta cena, enquanto o narrador nos confirma o fim das personagens, num tom filosófico e reflexivo. Pai e filha são, finalmente, engolidos pela escuridão. São abandonados por uma divindade que se demitiu e entregues ao silêncio infinito.
Béla Tarr, que é comparado a Tarkovsky e Bergman, faz de “O Cavalo de Turim” uma lição sobre a finitude da humanidade, dizimada pela sua própria ganância, ambição e maldade. Influenciado pelas marcas que a guerra deixou no seu país, Tarr avisa para os perigos do poder absoluto. Mas também ele terminará, porque é destrutivo e corrói tudo à sua volta. Como um vento de que não se pode escapar.
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