Com “O Bom, o Mau e o Vilão” (1966), Sergio Leone fechou a sua trilogia dos dólares. Esta foi a porta de entrada no mercado americano, depois de já ter conquistado a Europa. Foi também um filme feito para esse novo público, habituado aos westerns limpos de Hollywood. Aqui, pelo contrário, o enredo mistura personagens de moral duvidosa com a memória bélica americana.
A receita – recheada de atores de luxo – era sensível mas o resultado foi um spaghetti western que durou décadas. A pièce de resistance? Este é o filme que tem uma das bandas sonoras mais conhecidas do cinema, assinada – claro – por Ennio Morricone.
Vendo o sucesso europeu dos dois primeiros filmes da trilogia dos dólares, produtores americanos quiseram levar para os Estados Unidos da América a arte de Sergio Leone. Terá sido assim que surgiu a ideia para “O Bom, o Mau e o Vilão” (Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo). Leone e Luciano Vincenzoni pensaram a história e o guião foi escrito por Agenore Incrocci e Furio Scarpelli, além de Vincenzoni. Clint Eastwood, que já estava na trilogia, foi assegurado com a promessa de um novo estrelato, mas, dizem as histórias, ficou enfadado por partilhar o ecrã com os dois novos protagonistas: Eli Wallach (como Tuco) e Lee Van Cleef (Angel Eyes).
Ainda assim, Clint Eastwood foi agraciado com o papel de the good, “o bom”. O marketing destes westerns insistiu em cunhar a sua personagem como a de um homem sem nome, mas Clint Eastwood aparece aqui como Blondie. Sim, o cabelo loiro e os olhos azuis condizem com esse papel de protagonista mas aprendemos desde cedo que não podemos confiar inteiramente no que o guião nos diz.
O filme arranca com a escassez de palavras a que os westerns nos habituaram. Há um assalto. Pouco depois, ficamos a conhecer a primeira personagem deste triângulo: Tuco é um bandido mexicano com a cabeça a prémio. Leone congela a imagem para nos dizer que aquele é the ugly, algo como “o feio”. Só que o título original deste filme apelida Tuco de il cattivo, o que, em italiano, não diz respeito diretamente a alguém feio. É mais uma descrição da condição moral dessa pessoa ou da forma como desempenha uma dada tarefa. Tuco vai revelar-se detentor de uma moral flexível, oscilando entre a ambição desmedida e o desejo de vingança, mas sendo capaz de sobrepor uma à outra em função dos seus objectivos.
Conhecemos depois the bad, o mau, que é Angel Eyes. (estes apelidos...) A personagem de Lee Van Cleef é apresentada como indubitavelmente má. Aparece primeiro como um assassinado de sangue frio, que mata a troco de dinheiro. Depois, vai aparecer-nos como um oficial do exército americano, quando a guerra civil entra na narrativa. O nome que lhe dão é, por isso, uma irónica caracterização da personagem.
Por fim, o bom. Conhecemos a personagem de Clint Eastwood quando este captura Tuco, fugido da justiça que o persegue por uma mão cheia de crimes. Mas Blondie resgata Tuco da forca no último segundo possível. Têm um esquema para arrecadar o prémio da captura do fugitivo em diferentes cidades. Não podemos confiar na descrição de Leone, porque também este homem que é supostamente bom revela traços de vilão, ele que vai abandonar Tuco à sua sorte no meio do deserto, sem água.
É certo que as personagens vão evoluindo ao longo do filme e o próprio Blondie chega a dizer que a guerra é um absoluto desperdício de homens, uma observação que pode ser sinal da leitura de Leone sobre a guerra civil americana – o filme foi criticado pela forma intensa como expõe a violência e não podemos deixar de imaginar Tarantino a rir-se destes comentários, ele que é um fã confesso dos westerns de Sergio Leone. Por outro lado, talvez esta seja apenas uma observação simples, mas somos sugestionados pelos olhos azuis de Clint Eastwood e aquela ideia de que ele é o bom nesta história e achamos que há aqui uma conversão moral, uma transformação da personagem para atingir a elevação que se espera de um protagonista.
Nesta caracterização das personagens (que o guião depois desconstrói), acontecem momentos cinematográficos que ficaram para a história. A própria forma como Clint Eastwood se apresenta, com o seu chapéu e os cigarros curtos sempre acesos, acabou por se tornar icónica. Já o olhar semicerrado, esse, é mérito do ator e uma das suas marcas, de tal forma que até no contexto romântico de “As Pontes de Madison County” lá está aquele olhar carregado de Clint Eastwood.
Sergio Leone é exímio a captar estes pormenores como estratégia para contar a história, desvalorizando mesmo a existência de palavras. Aqui vemos planos apertados de mãos a passar sobre o coldre, insinuando que vem aí tiroteio. Os mesmos planos apertados focam os olhares das três personagens principais. É assim que se desenrola a cena final de “O Bom, o Mau e o Vilão”. Angel Eyes, Blondie e Tuco tinham passado o filme na esteira de uma pista: um tesouro foi escondido num túmulo, num cemitério.
Blondie sabe qual é o túmulo. Tuco sabe qual é o cemitério. Angel Eyes chega lá pela perseguição obsessiva da sua ambição, para deitar mãos àquele dinheiro. Explorando a dinâmica entre ambição e confiança, a história coloca os três homens a dependerem uns dos outros para encontrar o tesouro. Blondie, como se fosse o mais esperto, diz que escreverá numa pedra qual o túmulo em que se esconde a fortuna. Os três homens aproximam-se da pedra e afastam-se, com o mesmo passo lento de quem avalia, cautelosamente, os adversários. Ficam então num triângulo, talvez o mexican standoff original do cinema.
A tensão cresce à medida que o realizador vai alternando os planos: o olhar ameaçador do mau, o olhar astuto do bom, o olhar inconstante do vilão. Durante vários minutos, a dúvida que paira no ar é quem atacará cada um dos três homens. Vão atacar o mesmo, restando apenas dois deles? O desfecho revela que Blondie, que tinha tirado as balas da arma de Tuco, atira sobre Angel Eyes, não para o matar mas só para o ferir. Angel Eyes ainda tenta vingar-se mas é nesse momento que Blondie dispara o tiro final. Lee Van Cleef roda sobre a terra e vai cair numa vala aberta, à espera de caixão, num movimento repleto do drama de que Leone gosta nos seus filmes.
Sim, há uma carga dramática forte, que é acentuada pelas cenas épicas, como este final, pelos planos de pormenor, como os dos olhares, mas sobretudo pelo elemento que sela este filme: a música. Durante o mexican standoff, não há palavras. A música criada por Ennio Morricone vai crescendo em tom e em emoção.
“O Bom, o Mau e o Vilão” ficou na história do cinema pela sua narrativa – sendo um western clássico, não deixamos de nos inclinar na ponta do sofá nas cenas de maior tensão e perguntamo-nos o que vai acontecer afinal. Ficou na história do cinema pelos atores que aqui dão a cara, claro. Diz-se que este é o papel da vida de Eli Wallach e que Lee Van Cleef é exímio no lugar de antagonista, com o seu olhar ameaçador e riso sinistro. E Clint Eastwood deve a Leone esta rampa de lançamento que foi a trilogia dos dólares. “O Bom, o Mau e o Vilão” fica também para a história como um dos poucos filmes com uma banda sonora imediatamente reconhecível.
Os pilares dos spaghetti westerns de Sergio Leone são estes e são simples. A originalidade está na qualidade de todos eles. A música extraordinária, os atores de excelência e a capacidade única de contar uma história visualmente coroaram “O Bom, o Mau e o Vilão” como um dos filmes mais aclamados e que encerra aqui o capítulo dos westerns.
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