Uma mulher com um vestido de noiva corre por um descampado. Árvores negras são o pano de fundo. A luz brilhante da lua vinca o tom sombrio da cena. Raízes despontam do chão e prendem os pés e o corpo da mulher. Tudo acontece em câmara muito lenta, quase num registo imóvel. Ouvimos o prelúdio de “Tristão e Isolda”. A música é, para o realizador, um cunho romântico. Mas a história dos amantes Tristão e Isolda acaba em tragédia. Assim como “Melancolia” (2011) termina com o apocalipse.
Lars von Trier é o homem por detrás do argumento e da câmara de “Melancolia”. A história é inspirada na sua própria experiência da depressão e, certamente, é a esse facto que o filme deve a sua veracidade.
A mulher que corre ao som de Wagner é Justine (Kirsten Dunst). A primeira parte de “Melancolia” acontece na noite do seu casamento. Só que Justine parece tão distante do seu novo marido, Michael (Alexander Skarsgård), quanto de qualquer intenção de permanecer na festa que a irmã e o cunhado organizaram para celebrar a data.
Nos bastidores da festa sumptuosa, a irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) e o cunhado John (Kiefer Sutherland) revelam a natureza de Justine, mostrando uma preocupação constante para com a serenidade e a felicidade da noiva. Mas Justine flutua. Ora rodopia pelos braços dos convidados a dançar alegremente, ora se afoga no sufoco à sua volta. Tenta aproximar-se do noivo atento e visivelmente desesperado pela sua atenção, para logo se afastar definitivamente dele, fugindo para onde o olhar dele não pode pressioná-la. Com a irmã, a relação também é tempestuosa. Justine depende de Claire mas despreza-a, como se existissem em pólos opostos – de um lado, a razão e a calma; do outro, a imprevisibilidade das emoções.
Lars von Trier explicou sem rodeios a essência do filme: Justine e Claire são uma e a mesma pessoa. A depressão escolhe dela um lado para existir à vez, como uma luta pela sobrevivência à tona de água. Uma parte tenta afogar a outra e a simples existência é um atormentado exercício quase impossível de superar. Assim como a primeira cena em que vemos Justine a lutar contra as raízes da natureza, o filme alterna entre planos de câmara lenta e um registo de quase documentário. Aqui, a câmara é desorganizada ou pouco polida. E tudo é intencional, porque o realizador quer provocar-nos desconforto. Quer mostrar-nos os ângulos inesperados e, neles, fazer-nos ver uma expressão não ensaiada e menos óbvia de uma personagem. É percorrendo esse caminho que entramos no estado de incompreensão e desgosto de Michael, sobretudo quando decide ele mesmo abandonar a festa, como se fosse um mero convidado e não o marido que acaba de casar e perder a esposa.
A depressão afasta-os. É a mesma doença que atira Justine para um estado vegetativo em que o peso do mundo se abate sobre o seu corpo, ao ponto de não lhe ser possível sequer levantar a perna para entrar na banheira. É Claire quem a sustém. Estão de pé, na casa-de-banho, a lutar contra aquela força invisível mas poderosa.
A câmara lenta serve outro propósito. É que desde o início do filme que é estabelecida uma narrativa, à qual as personagens parecem ser alheias (com exceção de Justine). A narrativa parece demasiado surrealista para este registo de filme, mas assim é: um planeta está a aproximar-se perigosamente da Terra e poderá colidir com ela.
O nome do planeta? Melancholia.
O apocalipse surge então na forma da melancolia e é este o sentimento que domina Justine (e também Claire, mas já lá vamos). A metáfora é poderosa mas, ao ler algumas críticas ao filme, parece ter tido uma leitura mais objetiva da história. Nesta leitura, o planeta quer simbolizar a depressão de Justine. Exerce uma força gravitacional, à qual Justine não resiste – ela chega mesmo a deambular pelos terrenos da propriedade da irmã e do cunhado, à noite, banhando-se na luz da lua e absorvendo uma espécie de energia que só ela sente.
A ameaça de colisão do planeta e o possível fim da existência não preocupam Justine. Antes fascinam aquela personagem e parecem sossegá-la. Justine fica mais serena quando esta linha narrativa passa a dominar a história do que na primeira metade do filme, em que o seu casamento está no centro das atenções.
Na verdade, é Claire quem ganha protagonismo quando passamos à segunda parte do filme. Claire tinha sido até aí a irmã racional, movida por aquela máxima abstrata de que é preciso continuar a pedalar para nunca cair. Claire e Justine partilham notoriamente uma infância difícil: os pais são dois convidados bastante inconvenientes e mesmo desagradáveis durante o casamento, como se ferissem a golpe de espada a encenação alimentada por Claire, John e os convidados importantes da festa – e a sua espada é simplesmente a verdade, envolta em emoções exageradas.
O que distingue as irmãs é a sua maneira de lidar com a adversidade. Quando Justine se afundou na depressão, Claire foi racional. Mas ao sentir-se a perder o controlo perante um fenómeno que não podia controlar, é Claire quem se afunda em pânico e ansiedade. A colisão do planeta Melancholia com a Terra domina os seus pensamentos, extingue-lhe a determinação antes demonstrada, tolda-lhe o pensamento racional. O marido, John, tenta convencê-la de que o planeta está agora a afastar-se. Quando se apercebe de que ele voltou a flutuar no sentido da Terra, Claire não encontra o marido. Está sozinha e afunda-se na sua ansiedade.
As metáforas de Lars von Trier são poderosas. Dado que conhece por experiência própria o que é lidar com a depressão, o argumentista e realizador consegue encontrar representações visuais fortes dos sentimentos e explicações para os quais as palavras não chegam. A aproximação do planeta à Terra, assim como a explosão que acontece quando colidem, são imagens quase do domínio da ficção científica, dos filmes sobre o fim do mundo e os heróis que os combatem. Aqui, vemos somente dois planetas a pairar em câmara lenta ao som de Wagner.
É tudo esteticamente muito cuidado e quase bonito.
Algumas críticas a “Melancolia” condenam o que acham ser um endeusamento da depressão. Não estaremos apenas perante uma visão estética muito própria? Não seria Lars von Trier capaz de produzir imagens assim tão poderosas e belas (embora trágicas) se o argumento girasse em torno de outro tema que não a depressão?
Kirsten Dunst cumpre o papel de uma mulher mergulhada na depressão, até porque a história lhe abre esse espaço para brilhar – sobretudo com cenas centradas no seu rosto, que esperam em silêncio por qualquer sinal de emoção. Lars von Trier faz o resto, ao reduzir a velocidade do filme ao ritmo que conhece deste estado mental, mesmo que isso lhe custe a atenção do espectador. “Melancolia” é lento quando tem de ser, é intenso quando precisa. Mas é sobretudo verdadeiro, porque, de outra forma, não seria preciso existir.
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