É uma crónica do interior de Portugal no mês mais movimentado do ano. “Aquele Querido Mês de Agosto” é o produto da tirania financeira do cinema, um resultado que muitos viram como uma lufada de ar fresco. Ficção, documentário ou realidade, tudo o que há neste filme é o olhar do seu realizador – e inventor – Miguel Gomes, sobre o interior de um país que fervilha apenas algumas semanas por ano e o que resta dele nos outros onze meses.
“Aquele Querido Mês de Agosto” (2008) arranca no Verão de 2006. Estava tudo pronto para começar a filmar quando Miguel Gomes recebe a notícia de que, afinal, não havia dinheiro. O realizador até admite que projetou um “Bem-Hur da Beira”, com quase mil figurantes. Era demasiado ambicioso, mas, fosse o que fosse, chegaria inevitavelmente aquele momento em que a falta de financiamento ameaçava os seus filmes.
Na região da Beira Serra, o calendário de festas estava definido. Miguel Gomes decidiu então não esperar e partiu para aquele interior com uma pequena equipa. Durante esse verão, filmaram os bailes das aldeias daquela região. Acompanharam romarias. Viram chegar os emigrantes, no seu regresso estival a casa. Conheceram as pessoas que protagonizam as histórias do interior, aquelas que passam de boca em boca e que são responsáveis por batizar os habitantes e as famílias com nomes jocosos ou convenientes.
Intervalo no projeto para ver o que se fazia com esse material. Miguel Gomes pegou no que tinham filmado e, com a ajuda de Mariana Ricardo e Telmo Churro, reinventou a história, reescreveu o guião, reajustou expectativas. Daqui nasceu a primeira parte de “Aquele Querido Mês de Agosto”, cujo tom documental permitiu que o filme recebesse o selo da etnoficção.
Em entrevistas ao longo dos anos, Miguel Gomes afastou-se desta classificação e percebemos porquê. Há aqui um lado documental, sim, em cenas como aquela em que Paulo “Moleiro” (assim chamado por causa da atividade do pai) conta a sua história à câmara, em jeito de testemunho noticioso. Paulo relata as peripécias da sua vida, como saltar por desafio de uma ponte para o rio Alva, as lesões que colecionou nessas aventuras e o atropelamento por marroquinos que o acusaram de roubar um casaco. Como remate da história, diz que ainda está à espera de uma indemnização e que vai trabalhando no que pode.
Outro momento deste lado documental é digno de registo ou não fosse ele um retrato caricato a que o humor recorre para representar as pessoas do interior, com direito a vícios de linguagem e sotaques. Um casal idoso relata, com detalhe e leveza, o episódio em que um seu conhecido mata a mulher à machadada. Ele descreve o que aconteceu, como se estivesse à mesa do café a jogar cartas com os companheiros. Ela vai interrompendo a narrativa para atalhar um pormenor ou reforçar uma ideia (“foi a bebedeira”).
Estes quadros em que vamos conhecendo as pessoas das aldeias são intercalados com pedaços da realidade que Miguel Gomes introduz no filme, como o momento em que o produtor Joaquim Carvalho abre uma porta, provocando uma reação em cadeia: os dominós que o realizador e outros membros da equipa tinham estado a enfileirar em série tombam, uns sobre os outros, antes do tempo. Era para o genérico do filme, diz Gomes, perante a perplexidade do produtor. Aquele episódio dá origem a uma cena em que Joaquim confronta o realizador com as suas escolhas. Se ele achava bem o que andava a fazer à sua equipa. Trabalhar sem um guião fechado, filmar cenas que não constavam do texto… Da mesma forma, nos últimos momentos do filme, Miguel Gomes passa um ralhete a um técnico por estar a ser demasiado criativo na captação do som.
O que quer o realizador sugerir com esta mistura de verdade e ficção? Miguel Gomes vai além da mera apresentação da realidade. Aqui há uma realidade ficcionada, momentos que são fingidos. Para iludir o espectador? Para interromper a atenção? Para refletir no filme as dificuldades do mundo do cinema?
A razão fica ao critério de quem vê. Certo é que esta forma de fazer cinema tem adeptos e “Aquele Querido Mês de Agosto” mereceu o respeito da comunidade cinéfila. Surpreendeu em Cannes, venceu no Chile e foi a indicação portuguesa aos Óscares da Academia de 2008.
“Trago sorrisos no rosto, porque sei que vou voltar”
Na primeira parte, acompanhamos os bailes das aldeias, cheias de vida e emigrantes que reencontram com a família que ali resiste. O realizador faz questão de nos apresentar um programa de rádio local e uma linha de montagem do jornal de Arganil, onde o filme mais se passa. E mostra-nos o momento em que regressa ao palco onde gravou as primeiras cenas, para apresentar aos atores involuntários o resultado do seu trabalho.
Esse momento divide o filme em dois. As pessoas que vimos a fazerem de si mesmas mergulham na história e transformam-se em personagens. Joaquim é agora Domingos, pai de Tânia (Sónia Bandeira, que tínhamos conhecido no seu trabalho como vigia). Tânia é a voz da banda Estrelas do Alva, que percorre as festas de Arganil a interpretar as músicas populares que vão servindo de pano de fundo ao decorrer do filme. Hélder (Fábio Oliveira) é o guitarrista da banda e sobrinho de Domingos, que passa o Verão na terra do pai, antes de regressar a França.
As personagens orbitam em torno de um segredo. A mãe de Tânia desapareceu. O pai confessa à filha que foi levada por extraterrestres, mas a versão oficial é outra. Na aldeia, diz-se que fugiu. Os rumores materializam-se quando Domingos é anfitrião de uma desgarrada, com os companheiros da aldeia a sugerirem que pai e filha estão envolvidos. A verdade é que Miguel Gomes mostra uma cena, em contraluz, em que o pai abraça a filha. A dada altura, ouvimos Tânia soltar um grito antes de afastar o pai.
A existência desta linha narrativa resgata “Aquele Querido Mês de Agosto” ao registo monotemático de antes. Até aí, fomos apresentados a figuras-tipo do interior perdido de Portugal. Ouvimos o diz-que-disse sobre este e aquele, conhecemos os heróis locais, escutámos as historietas mirabolantes sobre quem matou quem, como e porquê. Mas agora, aquela banda de baile não é apenas um conjunto que desfila pelas terras de Arganil durante o mês mais concorrido do ano. São personagens, com segredos e vontades mais realistas do que a realidade ficcionada de Miguel Gomes e, talvez por isso, tão próximas dos temas de conversa locais. Temas como o envolvimento dos primos Tânia e Hélder, que passam uma noite juntos depois de o jovem salvar o tio de um incêndio florestal e antes do regresso a França.
Os temas são-nos familiares, é verdade, e ainda assim parecem-nos tão distantes quanto este interior de um país concentrado no litoral. Miguel Gomes não se contém e mostra com todos os dentes a realidade que conheceu, mesmo com personagens espetaculares como as que habitam “Amarcord” (1973) de Fellini.
Cá dentro, vemos que o arquiteto desta história conseguiu verter um Portugal muito verdadeiro para “Aquele Querido Mês de Agosto”. De fora, imagina-se que este filme pareça muito estranho e que as letras das músicas populares que aqui são banda sonora se percam algures numa tradução impermeável à identidade de um povo.
Diz a música de Dino Meira: “Meu querido mês de Agosto/Por ti levo o ano inteiro a sonhar/Trago sorrisos no rosto/Meu querido mês de Agosto/Porque sei que vou voltar”. O filme de Miguel Gomes, sendo português, não podia fugir ao adorado tema da portugalidade. Mas o tom com que essa ligação é feita não é reprovador, não é envergonhado. Há um orgulho intrínseco em tudo o que são estas pessoas, nas suas peregrinações anuais às aldeias, nos seus jeitos e sotaques e, sobretudo, naquela coisa tão portuguesa que é sofrer por saudade. Quando Celestino (Manuel Soares) abraça o cunhado, Domingos, na despedida antes de partir para França, diz-lhe dolorosamente: “A gente volta. Por muito mau que isto esteja, a gente volta sempre”.
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