São poucos os filmes portugueses na lista e os que lá estão são, sobretudo, clássicos antigos (Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, Fernando Lopes). Mas depois há Marco Martins e o seu “Alice”, filme de 2005 que surpreendeu tudo e todos.
Marco Martins era um jovem realizador, mas, 14 anos depois da estreia de “Alice”, isso pouco conta. Agora já tem obra feita para mostrar que o sucesso daquela sua primeira longa-metragem não foi fruto do acaso. “Alice”, contudo, não tem nada de jovem, se, por jovem, falarmos de uma visão que ainda não amadureceu, a que falta qualquer coisa.
Marco Martins sabia exatamente o que fazer de “Alice”: uma história de solidões. (o plural é intencional.) Estamos na cidade de Lisboa, fria e escura, que acolhe rispidamente os protagonistas – se não é ela mesma uma das personagens principais. O isolamento da vida numa grande cidade, onde rostos se cruzam sem nunca se conhecerem, é um tema bem diferente daquela vida de bairro que o cinema português antigo adorava.
Mário e Luísa – Nuno Lopes e Beatriz Batarda – são os pais de Alice, desaparecida há mais de 190 dias, a repetirem ao longo do filme a descrição: tinha três anos, cabelos castanhos com caracóis, vestia um casaco azul quando foi vista pela última vez. O desespero lança os pais em direções opostas. Luísa afunda-se na loucura da perda. Mário desdobra-se em estratégias para encontrar a filha, espalhando por vários pontos da cidade câmaras que captam as rotinas desses habitantes indistintos que chegam e partem, dia após dia. Deixam de ser o Mário e a Luísa para passarem a existir apenas como pais órfãos de filha.
Mário tem dois roteiros diários. Repete, todos os dias, os passos que deu quando Alice desapareceu, por temer que a filha comece a ser esquecida, se não retratar a sua rotina daquele último dia. E passa a recolher todas as cassetes das câmaras, que irá inspecionar à noite, numa sala que revestiu com frames onde acredita estarem pistas sobre o paradeiro da filha.
Uma das personagens pergunta-lhe pela esposa. As mães sentem mais estas coisas, diz. Nuno Lopes, que fala mais com o olhar do que com diálogos (o filme não tem muitos, sequer), exprime um sentimento de dor profunda. Aderimos logo à sua indignação silenciosa. Ele é o pai que cala a mágoa porque há algo mais importante a fazer. Sentimos com Mário a esperança obsessiva que qualquer pista faz acende no seu olhar.
Embora não se inspire na história de Rui Pedro, “Alice” refere o episódio do menino de 11 anos desaparecido de Lousada, em 1998. O realizador e o protagonista falaram com Filomena Teixeira, mãe de Rui Pedro e exemplo vivo da busca incessante que a personagem de Nuno Lopes retrata. Essa missão fica à vista de todas as pessoas com quem Mário se vai cruzando, em breves encontros que permitem reunir aqui um elenco de peso (Miguel Guilherme, Ivo Canelas, Gonçalo Waddington).
A Bernardo Sassetti coube tecer a banda sonora deste filme. Em vez de um conjunto de canções para serem pano de fundo da missão de Mário, o disco composto por Sassetti impulsiona a narrativa, sobretudo nos momentos em que o ritmo abranda quase ao ponto dos tradicionais filmes portugueses. “Alice” não chega a cair nesse exagero, porque consegue um equilíbrio perfeito entre o cheio e o vazio, de uma cidade que, na sua agitação, deixa escapar uma criança.
Sim, há equilíbrios perfeitos. A presença e a ausência jogam aqui de forma muito evidente, assim como a ação se opõe à letargia e a esperança está no extremo oposto da angústia.
A música de Sassetti ocupa o silêncio deixado por Alice. Vai buscar sons da cidade, como a chuva e o movimento dos carros, e pinta sobre eles um piano melancólico, muito real, muito presente. Por isso não se trata apenas de canções, mas sim de uma verdadeira banda sonora.
Marco Martins e Nuno Lopes receberam Globos de Ouro por “Alice” e Beatriz Batarda mereceu uma nomeação. Em Cannes, a longa metragem arrebatou o prémio Regards Jeunes e recolheu nomeações e vitórias noutros festivais de cinema internacionais.
Em 2016, Nuno Lopes e Marco Martins conseguem um reconhecimento ainda mais amplo com “São Jorge”. A história deste filme também fala de solidões, embora num contexto diferente. Mais do que uma identidade estética, Marco Martins parece ter uma predileção por histórias de solidão narradas em close up, de personagens fortes e atores brilhantes. Curioso é ver que, nessa solidão, “Alice” não resiste a deixar no ar uma réstia de esperança, naquele último momento em que uma criança surge no ecrã, mas agora de cabelo curto, já sem os caracóis iguais aos de Mário.
Comentários