Roger Ebert disse que “2001: Odisseia no Espaço” lhe provocou arrepios e que nenhum crítico de cinema deveria alguma vez proferir afirmação tão pirosa. A obra-prima de Stanley Kubrick prestou-se a inúmeras leituras e, ainda hoje, o seu significado é uma incógnita para os que não deixam de fazer perguntas. Entre as poucas certezas, uma resistiu a estes 51 anos: foi aqui que se fundou a era moderna da ficção científica no cinema. Foi aqui que o espectador passou a sonhar com o que está para lá do visível e com o que é possível nessa grande odisseia das viagens espaciais. Conseguir fazê-lo no ano de 1968 é mais do que suficiente para provocar arrepios.
Estranhamos os primeiros segundos do filme, em que o som começa a despontar baixinho, e achamos que o ecrã a preto é problema da projeção. Mas “Also sprach Zarathustra”, de Richard Strauss, começa a ganhar força no auditório e um eclipse lunar revela-se diante dos nossos olhos. Os créditos inscrevem no espaço o título “2001: Odisseia no Espaço”. E chegam os tais arrepios, com poucos minutos de filme a justificarem a escolha monumental de ver e escrever sobre uma das maiores obras do cinema e, ao mesmo tempo, uma das suas maiores incógnitas.
Vamos à história – e já que tudo é uma incógnita aqui, ponham-se de parte as teorias (inclusivamente as de conspiração), para uma leitura simples e mergulhada em espanto. Diz-se que o protagonista de “2001: Odisseia no Espaço” é o astronauta que sobrevive à expedição, Dr. David Bowman (Keir Dullea). Só que os astronautas – a raça humana – só nos aparecem passado um bom bocado de fita.
Primeiro, conhecemos os primórdios de nós mesmos, um deserto onde um grupo de macacos parece lidar com a finitude da sua existência, perante ausência de alimento, até que se depara com um objeto estranho. Um monólito geométrico de tom escuro perturba a rotina daquela tribo, com a sua presença e com a emissão ultrassónica de sinais de propósito indecifrável. A alteração a registar acontece quando os macacos descobrem que podem usar os ossos de presas mortas como arma, passando da hipótese à tese ao matar um membro da sua própria raça. Os animais, que se desfazem em gritos selvagens e movimentos bárbaros – são atores bastante credíveis que estão dentro daqueles fatos –, representam a conquista da racionalidade. A este primeiro ato, Kubrick chamou The Dawn of Man.
2001, o futuro e o presente
No seu site, a NASA explica como é que é que “Odisseia no Espaço” é um filme de ficção científica pioneiro: por muito estranho que nos possa soar hoje, foi aqui que se criou a imagem de uma estação espacial a orbitar em torno de um planeta. A realidade provou que a imagem era certeira.
A NASA destaca outras curiosidades, como o facto de vermos os tripulantes da expedição a Júpiter a fazerem exercício dentro da nave, o que também se tornou prática nas viagens espaciais dos nossos dias. Kubrick brilha neste momento, ao fazer planos que nos iludem a mente: vemos os efeitos da gravidade diante dos nossos olhos, mas temos a certeza de que, neste planeta, reinam as leis da física terrestre. Inovações como chamadas de vídeo são também um ponto que merece a atenção da NASA. Em 2019, esta técnica não impressiona mas basta pensar que se estava em finais dos anos 1960.
A consistência científica do filme é resultado de um longo e intenso percurso de preparação (os trabalhos começaram em 1964). Kubrick contou com a colaboração de vários especialistas e, sobretudo, de Arthur C. Clarke, escritor da história que deu origem ao filme, coguionista e uma autoridade no mundo da ficção científica.
Essa porção da história, a dos astronautas que viajam para Júpiter para responder a uma missão estranha, ocupa o segundo ato do filme e é aqui que a mestria técnica brilha. Com a ajuda de engenheiros e arquitetos, Kubrick construiu cenários realistas para os voos das personagens e da estação espacial, fora da órbita terrestre. “Odisseia no Espaço” é pioneiro porque recorreu a esses efeitos especiais mecânicos de proporções monumentais e alcançou um impacto surpreendente, que ainda hoje se mantém atual. Estávamos no final dos anos 1960, a anos-luz de iPads, carros que se conduzem sozinhos e robots Sophia.
A técnica impressiona mas não chegaria, por si, para produzir os momentos de beleza única do filme. Kubrick introduz de forma soberba músicas imponentes (usa excertos de composições de Johann Strauss e Gy örgy Ligeti), como se colocasse a nave e os planetas num bailado espacial, com a imensidão negra do espaço como pano de fundo.
Na sua missão, os astronautas são ajudados por um computador inteligente, HAL 9000, cuja linhagem nunca havia cometido qualquer erro. HAL é a voz omnipresente (de Douglas Rain) que acompanha os astronautas, até que se torna o predador que os persegue e antecipa a sua intenção de o desligar quando um erro é detetado. Bowman protagoniza a cena em que, com os colegas mortos, tem de desligar as funções inteligentes do computador de bordo. Falamos de uma máquina (representada por uma luz vermelha, como um olho ubíquo), mas o diálogo que acontece entre os dois humaniza aquela personagem etérea. E, a 50 anos de distância desta história, continuamos a deparar-nos com o medo de que o Homem venha a ser ultrapassado pela Máquina, ela que desenvolve emoções humanas.
A natureza, a máquina e a divindade
Numa terceira parte do filme, Dr. Bowman anda à deriva pelo espaço. Os diálogos escasseiam mas os silêncios impõem-se com um significado arrebatador, por vezes intensificado pela música. É uma música espacial que ouvimos durante as cenas em que o rosto de Bowman está a vibrar diante da câmara, num close up duradouro e desconfortável. A sua nave atravessa (durante longos minutos) feixes de luz que nos levam a concluir que entrou para uma outra dimensão espacial/temporal. Trata-se de uma cena de paisagens psicadélicas prolongadas e, repita-se, os efeitos especiais (que mereceram o único Óscar que o filme ganhou) não foram digitais.
Esse fenómeno liga-nos ao final da história. Bowman, de rosto envelhecido, está deitado numa cama. Kubrick mostra-nos um copo a partir-se e a derramar o líquido que continha, uma natureza morta que se finda. É justamente a morte que chega ao astronauta, ele que se encontra diante de um monólito negro, como vimos ao longo do filme.
Bowman estica um braço débil e parece comunicar com a pedra. Em vez do homem, vemos agora um feto em formação, dentro de algo semelhante ao útero materno. Sucede-lhe um plano do espaço, a Lua e depois a Terra surgem no horizonte. A leitura é de que se completou ali um ciclo de vida e que outro está a abrir-se, embora a noção de tempo se tenha diluído. O regresso ao planeta mãe é o recomeçar, no mesmo ponto de partida.
Vale a pena dizer que “2001: Odisseia no Espaço” mereceu a curiosidade de teólogos e agradou à comunidade religiosa. E, na verdade, este final presta-se à teoria de que uma divindade tem o poder de conceder a vida e que ela é provida de significado.
Se no primeiro ato da odisseia vimos a natureza a formar-se (com a tribo de macacos a conquistar a racionalidade), a segunda parte dedicou-se aos dilemas Homem/Máquina. É agora a vez de Deus, nesta trilogia mitológica que a história de Clarke e Kubrick tece.
O protagonista do filme não é, por isso, um astronauta ou um computador, nem mesmo a missão que lhes foi confiada. “Odisseia no Espaço” conta-nos a história da existência humana, com um olhar filosófico ímpar num filme desta época – e custa acreditar na incrível aposta dos estúdios num projeto destes, ainda mais tendo em conta a personalidade profissional obsessiva e perfeccionista do realizador.
Essa bússola filosófica parece ter sido cuidadosamente preservada. Não se perde sequer credibilidade pela representação da vida extraterrestre, porque se usou a figura de um monólito em vez das formas monstruosas dos filmes que lhe antecederam ou dos seres de cabeça oval a que a ficção científica preguiçosa nos habituou.
O legado de “2001: Odisseia no Espaço”
O grande público e alguma crítica reputada acusaram Kubrick de criar um filme lento (há quase uma hora sem diálogos) e sem trama aparente. Mas além da comunidade religiosa, outro público abriu os braços para “2001: Odisseia no Espaço”. Ver o filme sob o efeito de substâncias melhorava a experiência, diziam.
Segundo a New Yorker, David Bowie terá sido um desses espectadores e, no ano seguinte, o músico lança a história do seu Major Tom em “Space Oddity”, poucos dias antes da aterragem do Apollo 11 na Lua. Aos produtores do filme não passou em branco essa vaga que se estava a levantar em torno do filme e os posters promocionais passaram a descrevê-lo como “the ultimate trip”.
Hoje, “2001: Odisseia no Espaço” é reconhecido unanimemente como uma obra-prima e alguns dos maiores realizadores de ficção científica apontam, sem rodeios, a influência de Kubrick no seu trabalho.
Comentários