Nuno Lopes e o espanhol Álex González num jipe, perseguidos por narcotraficantes que conduzem outro, algures na selva amazónica. Promete ser uma das cenas mais agitadas do segundo episódio de "Operação Maré Negra" e foi filmada várias vezes, como o SAPO Mag teve oportunidade de testemunhar no local, numa tarde em finais de agosto. Mas em vez da Amazónia, o cenário foi na verdade o da área protegida de Bertiandos, freguesia de Ponte de Lima.
Além dos dois atores, dos que encarnam os seus inimigos, da equipa de jornalistas que visitou a rodagem e de uma produção que junta largas dezenas de profissionais, as quatro cenas da minissérie filmadas neste dia contaram com 60 figurantes, todos da região. E Ponte de Lima está longe de ser a única localidade nacional que poderá ser vista em "Operação Maré Negra": Viana do Castelo, Ponte da Barca, Porto, Vila Nova de Gaia e Águeda também acolheram atores, realizadores ou produtores de diversas origens, de Portugal a Espanha, do Brasil à Colômbia.
"Há uma partilha de trabalho e de método de trabalho que acho que é incrível. Fazer equipas multidisciplinares e multinacionais é fantástico", assinala Pandora da Cunha Telles, da portuguesa Ukbar Filmes, uma das entidades envolvidas na coprodução - à qual se juntam a Ficción Producciones, a FORTA (Federação de Organizações Regionais de Rádio e Televisão espanholas) e a RTP.
"Há uma vontade grande, quer da RTP, quer de vários produtores, de subir o nosso nível de exigência para poder ter um produto que seja não só para Portugal, mas internacional", acrescenta a produtora em entrevista ao SAPO Mag. Pandora da Cunha Telles avança que a estreia de "Operação Maré Negra" será algures no primeiro semestre de 2022, tanto na plataforma de streaming Amazon Prime Video como na RTP, uma vez que a estação pública tem o alargamento de coproduções internacionais entre as suas metas (depois de apostas como "Auga Seca", disponível na HBO, "3 Caminos", também com a Amazon, e "Glória", a caminho da Netflix).
"Se um dia tivéssemos uma série portuguesa que tivesse sucesso mundial, com certeza surgiriam outras tantas", defende Nuno Lopes, dando como exemplo a explosão de séries espanholas depois de "La Casa de Papel" ter conquistado públicos de todo o mundo através de uma distribuição alargada via streaming.
Da realidade à ficção
"Operação Maré Negra" é, em parte, uma história portuguesa, ao se inspirar no caso verídico de um submarino artesanal que atravessou o Oceano Atlântico com três toneladas de cocaína, em 2019, e passou por Portugal. Oriundo da América do Sul, acabou por ser intercetado na Galiza. A minissérie acompanha, em quatro episódios de 50 minutos cada, a invulgar jornada marítima dos três homens e daqueles que se cruzam pelo seu caminho.
Da galeria de personagens fazem parte o marinheiro Nando (Álex González), o mecânico Sérgio (Nuno Lopes) e Carmo (Lúcia Moniz), uma agente policial que segue o rasto do trio. Outro mecânico, Walder (o brasileiro Leandro Firmino, o eterno Zé Pequeno de "Cidade de Deus"), Angelito (o colombiano David Trejos), elemento de um cartel, e o engenheiro de construção naval João (o brasileiro Bruno Gagliasso) também fazem parte de um thriller que, além de Nuno Lopes e Lúcia Moniz, tem Luís Esparteiro entre os atores nacionais.
"Não diria que esta história é baseada numa história verídica, é inspirada numa história verídica. O que se quer contar é como é que este submarino chegou aqui, mas a partir daí é tudo uma ficção, os argumentistas inventaram à volta dessa história", esclarece Nuno Lopes. Dessa opção de não tentar copiar uma história real a papel químico surgiu uma personagem que pouco lembrará a do popular Boxer, que o ator português encarnou em "White Lines", série espanhola da Netflix.
"Uma das coisas que me fez aceitar estar aqui é ser uma coprodução Portugal-Espanha, a personagem falar muito espanhol e ser completamente diferente do que era o Boxer. O Boxer era um tipo quase icónico, tinha um peso e ao mesmo tempo uma maturidade no meio que era muito interessante, para além de ser muito violento em certas alturas. Mas este é um miúdo que não cresceu", contrasta.
"É um tipo que, na verdade, ainda tem 18 anos e ainda quer ter a sua loja de surf e tudo mais. É um tipo que se mete com os traficantes, começa a traficar, é mecânico, vem do norte de Portugal, de um país pobre, de um sítio pobre, e que de repente torna-se mecânico de barcos e por causa disso começa a trabalhar em transportes de drogas mas nunca tem o objetivo de se tornar um grande dealer. Na verdade, quer ganhar algum dinheiro para comprar as suas roupas de marca e para se divertir", descreve. "Ele próprio diz na série que não tem espírito de Pablo Escobar", sublinha ainda, considerando que Sérgio "não é um tipo mau, mas é má companhia".
"A identidade é representada"
Lúcia Moniz também destaca a diferença da sua personagem face a outras que interpretou, apontando que, em algumas propostas televisivas, "a tendência é muito para afunilar o ator naquilo que já viram fazer e não o desafiar". Aqui, experimenta um registo assente no thriller e no submundo do narcotráfico, uma novidade depois de papéis mais ligados à comédia ou ao drama. E realça que esse não é o único elemento distintivo de "Operação Maré Negra". "Nesta série fala-se português, fala-se castelhano, galego... Não vão buscar atores galegos para fazer de portugueses, há esta diversidade, o que é bom, a identidade é representada. E depois tem todos os ingredientes de suspense, de ação, tem uma linguagem cinematográfica que me agrada particularmente".
Nuno Lopes avança que o argumento se interessa por "um lado que geralmente é contado através de histórias da América Latina". Afinal, "todos nós já vimos milhares de séries sobre cartéis colombianos e tudo mais e há muito poucas séries e filmes sobre drogas na nossa região, no norte de Portugal".
A proximidade não é apenas geográfica, mas também temporal, salienta João Maia, um dos realizadores. "Sinto o impacto de a história ser muito próxima. Fiz o 'Variações', que era uma coisa dos anos 80, mas isto está muito próximo. O submarino é igual... Quando fizemos 'A Espia' [série de época da RTP], que era uma coisa dos anos 40, podíamos ter um bocadinho mais de liberdade criativa, mais ficcionada. Mas é estimulante estarmos nos sítios exatos onde as coisas aconteceram".
Atrás das câmaras estão também os espanhóis Daniel Calparsoro ("Hasta El Cielo", "Apaches") e Oskar Santos ("A Unidade", "A Mão de Midas"), ambos igualmente com experiência no pequeno e no grande ecrã. "É diferente fazer um projeto em que o realizador desenha o projeto de raiz e trabalhar com outros realizadores, que também é estimulante", assinala Maia. "Todos tentamos beber um bocadinho uns dos outros e dar inputs à série. É diferente, mas a responsabilidade é idêntica".
Para Oskar Santos, "o mais importante é o guião e as personagens". Depois "há um realizador que define um estilo e tenho de seguir esse caminho. E aqui segui o caminho iniciado pelo Daniel".
"Neste mundo não há vítimas"
Além da diversidade de cenários e nacionalidades, uma das intenções da minissérie é fugir a estereótipos de caracterização ligados ao narcotráfico, defende a maioria dos atores. Álex González, que o público português conhece bem de séries espanholas como "O Príncipe" (que passou na RTP2) ou "3 Caminos" (disponível na Amazon Prime Video e emitida pela RTP1), acredita que conseguiu fazê-lo através de Nando, um jovem marinheiro galego de origens humildes, que também é campeão de boxe amador.
"Inicialmente tinha pensado na personagem como alguém mais introspetivo, sem rumo, um pouco vitimizado. Mas o realizador, Daniel [Calparsoro], disse-me: 'Alex, neste mundo não há vítimas. São personagens responsáveis pelo que fazem, por isso não podemos vitimizá-las'. E isso mudou todas as cenas", recorda. "Olhava para ele com alguma pena, mas passou a ser uma personagem que insiste e insiste. Cada vez quer mais", explica, dizendo ainda que ao longo da viagem no submarino "descobre que tem algo que não sabia que tinha, como um Cristóvão Colombo ou um Fernão de Magalhães", o que faz vir à tona o seu "espírito de capitão de equipa".
"O guião dá-nos informações sobre a personagem, mas depois cabe ao ator dar-lhe dimensão e desenvolver um arco que permita que o espectador se identifique com ele em algum momento. Porque senão é só o mau da fita", explica o colombiano David Trejos a propósito do homem que compôs, Angelito, perigoso membro de um cartel e viciado em cocaína.
"É uma construção de várias coisas que vivi e de várias pessoas que conheci na Colômbia. Nasci num bairro onde se produz cocaína, por isso tive contacto com pessoas deste mundo. Na Colômbia é fácil nascer pobre e crescer pobre, porque as oportunidades são muito limitadas. Mas se as quiseres, podes encontrá-las e sair desse mundo", conta o ator. "A certa altura, o Angelito diz que gostava de ter sido outra coisa mas a sua vida conduziu-o a isto. Parece-me muito importante que ele tenha esse lado de mercenário e de assassino, mas também sentimentos em relação ao seu passado e futuro que o seu presente não permite explorar".
Bruno Gagliasso agradece a oportunidade de interpretar João, um homem de negócios "instigante e interessante" que lhe permitiu fugir ao retrato mais óbvio de um criminoso numa história que combina "ação, drama e realidade". Conhecido por papéis em várias telenovelas ou, mais recentemente, pelo filme "Marighella" (2019), de Wagner Moura, mostra-se entusiasmado com as portas abertas pelo streaming (também está a rodar "O Santo", série da Netflix) mas não esquece a escola da televisão linear.
"Sou suspeito para falar, porque na televisão consegui fazer de esquizofrénico, fiz de assassino... tenho um carinho muito grande. Tudo depende de como direcionamos a nossa carreira, o nosso 'não' ser tão importante como o 'sim'. O que acho é que o streaming está a dar-me a oportunidade de conhecer culturas novas e de contracenar com pessoas diferentes. Estar aqui em Portugal a fazer uma série luso-espanhola... que maravilhoso".
Mais plataformas e mais recursos
Álex González também sublinha a visibilidade global que uma série como "Operação Maré Negra" pode ter através do streaming. "Já não trabalhamos só para Espanha, mas para toda a América Latina. Muita gente não gosta da globalização, mas parece-me que traz mais igualdade", defende. "Em Portugal e Espanha fazemos séries com muito menos recursos do que nos EUA, mas estão a romper-se todas as barreiras".
"Começa sempre pelos recursos", nota Lúcia Moniz. "Os recursos vão dar mais tempo, vão dar possibilidade de contratar mais gente, em que se calhar um não está com dez funções, tem uma função, tudo isso torna o trabalho mais eficaz". O que não invalida o peso "da parte artística, de sensibilidade e de bom gosto, que também é um grande fator".
"É impossível fazeres em dois meses e meio o que fazes em dez meses ou em 14", compara Nuno Lopes ao recordar a sua participação em "White Lines", que contou com 14 meses de filmagens para 10 episódios, um luxo face ao cenário televisivo português. "Nunca será a mesma coisa. Significa que numa das séries vais fazer oito cenas por dia e na outra uma cena por dia. Como é óbvio, essa vai ficar melhor", embora realce que em termos técnicos, as equipas portuguesas são "extraordinárias".
Iniciada a 7 de julho, a rodagem de "Operação Maré Negra" terminou a 3 de setembro e, além de cenários portugueses como o de Ponte de Lima, passou por várias localidades espanholas, de Santiago de Compostela a Outes ou à Ilha de Arousa. Entre a cidade e a selva, em viagens marítimas ou a quatro rodas. E sempre "a tentar perceber qual a emoção que queremos passar com a cena e a trabalhar todos em conjunto para aí", garante Nuno Lopes.
"Às vezes estás a fazer isso só com duas pessoas numa mesa, às vezes estás a fazer isso com duas pessoas dentro de um barco e a ser perseguido por helicópteros e submarinos", diz entre risos, pouco depois de ter tentado escapar de narcotraficantes impiedosos num jipe. "Mas a emoção é exatamente a mesma".
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