“Em Portugal há uma ferida colonial que não quer cicatrizar: o passado colonial continua a ser glorificado nas artes, no ensino e na política”, disse a criadora, entrevistada pela agência Lusa, sobre a questão da descolonização na cultura.
Mónica de Miranda é uma das três artistas e curadoras - com Sónia Vaz Borges e Vânia Gala - que criaram o projeto “Greenhouse”, escolhido para representar oficialmente Portugal na 60.ª Bienal de Arte de Veneza, a decorrer até 24 de novembro naquela histórica cidade italiana, sob o tema geral "Estrangeiros em toda a parte".
Para a artista, cofundadora do Hangar - Centro de Investigação Artística, em Lisboa, o processo de descolonização “passa por reconhecer, não só os apagões históricos portugueses e a história da descolonização nos países africanos como fundamentais para a derrota da ditadura em Portugal, mas também a força da migração e força intelectual africana em Portugal para o desenvolvimento cultural, económico e social português, desde as contribuições na sociedade civil, até às artes e à política.”
Nascida no Porto, em 1976, a artista portuguesa de origem angolana vive e trabalha atualmente entre Lisboa e Luanda, e tem vindo a desenvolver o seu percurso artístico e investigação nas áreas da arqueologia urbana, política, memória e as geografias pessoais.
Sobre o processo de descolonização, Mónica de Miranda citou, nas respostas enviadas por escrito à Lusa, o semiólogo argentino Walter Mignolo, uma das figuras centrais do pensamento decolonial (de crítica à persistência de relações de poder e de processos de discriminação decorrentes do colonialismo), que o considera “uma ferida aberta do passado que se perpetua no presente.”
“A questão é que não é possível desmantelar ou desfazer o colonial, e passar de um momento colonial para um não-colonial, pois as entranhas da sociedade ocidental estão enraizadas no colonialismo”, considera a artista nomeada para o Prémio EDP Novos Artistas em 2019 e, em 2016, para o Prémio Novo Banco de Fotografia.
Para a criadora, a descolonização “é um caminho de luta contínua no qual se devem identificar, tornar visível e encorajar 'lugares' de exterioridade e construções novas da alteridade” nas áreas social, política e cultural.
A artista acredita que o termo descolonização possui “muitos tempos” e, por isso, não pode ser entendido isoladamente no presente, porque “faz parte de um contexto histórico da colonização, e é necessário observar as consequências que este processo do passado tem no presente.”
“Temos de pensar que todos os processos de descolonização em Portugal foram mais tardios do que em qualquer outro país”, sublinhou a artista representada em coleções públicas e privadas como o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, o Arquivo Municipal de Lisboa, o Museu Nacional de Arte Contemporânea e a Fundação Calouste Gulbenkian.
Recordou que o Gana foi o primeiro país a tornar-se independente na África subsaariana, em 1957, e que a maioria das colónias francesas em África obtiveram independência nos anos 1960. Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique, colónias portuguesas, só se tornaram-se independentes na década de 1970 e, à exceção da Guiné-Bissau, reconhecida pela maioria dos países das Nações Unidas no final de 1973, apenas após a revolução de 25 de Abril, em 1974.
Para a artista - cuja obra é interdisciplinar e mistura desenho, instalação, fotografia e audiovisual nas fronteiras entre a ficção e o documentário - os “processos tardios de descolonização e de independência em África” tiveram impacto em todos os setores, desde as estruturas sociais à cultura.
“A cultura reflete estes espaços sociais, onde não há representatividade negra que reflita a própria constituição da população portuguesa na arte e na cultura. Há poucas estruturas que realmente têm um trabalho descolonial na sua estrutura”, lamentou, sobre a realidade que conhece no país.
Sobre o estudo e reconhecimento real do perfil da população portuguesa lembrou que "ainda não há censos que incluam informação sobre a identificação étnico-racial dos cidadãos portugueses”, citando o trabalho da socióloga e ativista antirracista Cristina Roldão, uma das investigadoras que fez parte do Grupo de Trabalho Censos 2021 – Questões “Étnico-Raciais”, e do Grupo de Trabalho para a Prevenção e o Combate ao Racismo e à Discriminação do mesmo ano.
“Portugal ainda não dispõe de informação oficial sobre quantos dos seus residentes e cidadãos são provenientes de países africanos, o que não ocorre em países como o Reino Unido ou França. Sem ter os dados, é muito mais difícil elaborar estratégias eficazes para combater o racismo estrutural e a desigualdade”, disse a artista, que cresceu no norte do país e viveu durante 15 anos no Reino Unido.
Na chegada a Lisboa, em 2007, uma cidade que lhe era desconhecida, encontrou um meio artístico “fechado em si próprio”, e sobretudo virado para os cânones europeus. Decidiu então viver entre a capital portuguesa e Londres, onde tinha mais condições para o trabalho que desejava desenvolver.
E essa experiência no Reino Unido permite-lhe comparar o percurso de Portugal, onde não existiu um movimento negro nas artes, como aconteceu, por exemplo, com o Black British Arts, nos anos 1980, além de muitos movimentos cívicos.
“Quando cheguei a Lisboa, era muito complexo ter certas conversas, quase nem se tocava no assunto”, recordou, sobre uma realidade que encontrou depois de ter passado mais de uma década a viver em Londres.
“Neste momento há conversas em debates públicos sobre racismo estrutural, desigualdades sociais e económicas, processos coloniais. Estas reflexões estão, lentamente, a mudar as mentalidades das estruturas. Mas estamos a falar, eventualmente de um atraso de 40 anos em relação a outros países europeus", conclui a artista que participou, entre outras, na Bienal de Dacar, no Senegal, em 2016, e nos Encontros Fotográficos de Bamako, no Mali, em 2015.
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