Escrita pelo dramaturgo argentino Claudio Tolcachir em 2005, a partir do trabalho com atores, e agora encenada por Pedro Carranca, a peça estabelece espaços pessoais dentro dos espaços partilhados, explorando situações banais para confrontar sentimentos muitas vezes opostos, da violência à mais profunda comoção. Trata-se de um dos textos recentes mais premiados do teatro argentino.
As personagens correspondem a um núcleo familiar composto por avó, filha e netos, de repente confrontados com a ameaça de morte da matriarca, aos quais se junta o médico, que acompanha a doença. Na primeira parte, a avó, a filha Memé, os netos Damián, Gabi, Marito, Verónica, Hernán, circulam na sua casa; na segunda, o cenário de três pisos, construído em estruturas metálicas, dá lugar à clínica onde a avó é internada.
No conjunto são "uma espécie de sobreviventes, todos um bocadinho egoístas, mas heroicos ao mesmo tempo”, disse Pedro Carraca sobre as personagens, durante um ensaio da peça, considerando-as “diamantes feitos sob a pressão da necessidade de se conseguirem desenrascar”.
Os sentimentos protetores da avó definem o único traço de união da família. E quando se vê confrontada com a morte, apercebe-se de que “devia ter saído de cena antes”, pois a vontade de proteger os seus impediram-nos de atingir a maturidade.
Este texto do dramaturgo, ator e encenador argentino, nascido em 1975, fundador da Companhia e Escola Timbre 4, chega agora ao Teatro da Politécnica, pouco mais de 14 anos depois da sua única apresentação em Lisboa, sob a direção original de Tolcachir com os 'seus' atores, no âmbito do festival “O fervor de Buenos Aires” do Centro Cultural de Belém (CCB), tendo na altura também sido levado ao Teatro Municipal de Portimão (Tempo), pela estrutura argentina.
Em 2017, os Artistas Unidos publicaram a tradução da peça na coleção Livrinhos do Teatro (agora reeditada) e promoveram uma leitura que chegou às emissões do Teatro Sem Fios da Antena 2. Pedro Carraca, que dirigiu esta apresentação, começou a pensar então em levar a cena "A omissão da família Coleman".
Na altura, porém, o diretor artístico e fundador dos Artistas Unidos, Jorge Silva Melo (1948-2022), opôs-se ao projeto, recorda Pedro Carraca, por entender que nunca iria ser tão bem feito "como o original", que já tinha sido mostrado no país.
Carraca recorda que ainda tentou explicar que estivera em cena apenas um dia, e “que há mais público do que o que cabe um dia", mas Silva Melo manteve o não, porque "não saberiam fazer o texto tão bem como o original”.
A encenação original, apresentada no CCB, tinha a particularidade de o público ter de atravessar o espaço da família.
Pedro Carraca acredita que Silva Melo “deve ter realmente amado o espetáculo [original] quando o viu, e deve ter pensado 'nunca conseguirei elevar a fasquia até àquela qualidade'”.
Mas como o fundador da companhia usava a expressão “enquanto for comigo, não”, sem alguma vez ter dito “nunca faremos este texto”, os Artistas Unidos acharam chegada a hora de o pôr em cena.
Silva Melo "tinha outra coisa", argumenta o encenador: "Quando visse o nosso resultado tinha comparação, e eu não tenho”.
O texto do dramaturgo argentino impõe “um ritmo infernal”, afirma Pedro Carraca, embora “obrigue a paragens pelo meio”.
A peça nasceu de um trabalho de improvisações com os atores feito ao longo de nove meses. “Todos eles sabem perfeitamente porque é que dizem as coisas e porque é que as coisas existem, e nós não temos nove meses para trabalhar”.
“É muito interessante o contraste" imposto pelos atores, durante a representação das suas personagens. "Nós olhamos para eles e achamos que são disfuncionais, e eles olham para nós e acham que somos nós os disfuncionais”, referiu o encenador.
O autor argentino vai “apresentando mundos diferentes” ao longo das várias peças, como quem diz “agora pensem lá se o normal é isto ou não é”.
A avó, “o cais seguro” da família, a filha Memé, imatura do ponto de vista emocional, Marito, um jovem com um lado psicótico, mas ao mesmo tempo profético, não são apenas personagens sobre as quais o público pode tirar conclusões.
"O público pode tirar imensas conclusões sobre todas, mas depois de passar pelo texto várias vezes chegamos à conclusão de que nós não sabemos nada [sobre elas], porque, na verdade, não entendemos nada do que se passa na história, e aceitamos uma série de coisas como realidade, porque nos é dito”, explicou o encenador.
Numa história “cheia de buracos”, a “omissão é realmente não fazermos a mínima ideia do que estamos a falar quando falamos da peça à saída”, sublinhou.
Para Pedro Carraca, "A Omissão da Família Coleman" é “a mais violenta” das duas peças de Tolcachir em que já participou nos AU: “O vento num violino” (2018) e “Emília” (2019), porque “os personagens se moem todos uns aos outros” embora “sem maldade”, apenas por “necessidade de sobrevivência”.
Com tradução de Rita Bueno Maia, interpretam Américo Silva, Ana Castro, Antónia Terrinha, Hélder Braz, Nídia Roque, Nuno Gonçalo Rodrigues, Raquel Montenegro e Vicente Wallenstein.
A cenografia e os figurinos são de Rita Lopes Alves, a luz, de Pedro Domingos, o som, de André Pires e, na assistência de encenação, está Inês Pereira.
A peça, estreada em 2006 na Fiesta Provincial de Teatro de Buenos Aires, segundo a página da companhia argentina Timbre4, já passou por mais de seis dezenas de palcos, nos diferentes continentes, e recebeu, entre outros, os prémios de melhor montagem internacional do círculo de críticos de arte do Chile, em 2008, e melhor obra argentina e melhor direção, atribuídos pela Associação de Cronistas do Espectáculo da Argentina, no ano da estreia.
Em Lisboa, no Teatro da Politécnica, "A Omissão da Família Coleman" fica cena até 27 de maio, com récitas de terça a quinta-feira, às 19h00, à sexta-feira, às 21h00, e, ao sábado e domingo, às 16h00 e às 21h00.
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