
A historiadora Anne Sebba, autora de “A Orquestra Feminina de Auschwitz”, disse à Lusa que este livro “expõe o sadismo dos nazis e a sua perversidade, e demonstra como usavam qualquer pretexto para torturarem”.
“A Orquestra Feminina de Auschwitz” não é uma obra de ficção sobre o campo de extermínio. Assenta em investigação documental, reúne testemunhos de sobreviventes. A autora, a historiadora e antiga jornalista da agência Reuters Anne Sebba, não é aliás favorável "a romances sobre o Holocausto”. "Há muita documentação, e precisamos de demonstrar que foi verdade, que de facto aconteceu mesmo, que não é ficção", afirmou.
Em entrevista à agência Lusa, a historiadora britânica disse que pode ser “uma perversão falar da vida cultural nos campos de concentração nazis”, com factos e frontalidade como acontece na sua obra, mas alertou para a necessidade de contar esta história, de expor a realidade.
“'A Orquestra Feminina de Auschwitz' expõe o sadismo dos nazis e a sua perversidade, e demonstra como usavam qualquer pretexto para torturarem” de qualquer forma, disse a autora, argumentando como a prática musical era “uma espada de dois gumes”, e “afetava psicologicamente as instrumentistas e as mulheres que, ao seu som, tinham de marchar e viviam em condições de horror.”
Para Sebba, “a história da orquestra feminina é uma evidência poderosa da força que pode surgir da superação de diferenças, através de pequenos atos de bondade e gestos de solidariedade”.
“Aquela era a solidariedade feminina no seu melhor, afirmando-se como uma força inamovível que salvou pelo menos 40 vidas”, disse a autora à Lusa.
No contexto da II Guerra Mundial e do combate ao nazismo, Anne Sebba questiona-se sobre o motivo para o campo de Bergen-Belsen, libertado pelas forças britânicas em abril de 1945, ser “tão desconhecido” no seu país. Foco de mais de seis anos de investigação de Anne Sebba, Bergen-Belsen foi criado em 1940, na Baixa Saxónia.
A historiadora critica o facto de no Reino Unido se “conhecer melhor” a batalha de Dunquerque, que aconteceu entre finais de maio e início de junho de 1940, “um falhanço tornado numa história da coragem”.
“Mas não sabemos de Bergen-Belsen, o que fizeram os britânicos, como o libertaram e tentaram salvaguardar alguma dignidade aos 52 mil presos que ali encontraram, e levar à justiça os responsáveis nazis. Nunca percebi porque não contaram esta grande história”.
A historiadora sente-se de certa forma ligada aos acontecimentos, pois o seu pai, que morreu há 13 anos, era comandante da brigada de carros de combate do Exército britânico que, em 1945, procedeu à destruição de estruturas potencialmente suspeitas em Belsen. Sebba garante no entanto nunca ter falado com o pai sobre o assunto.
A historiadora qualificou como “um horror” a situação encontrada nesse campo. “Milhares de criaturas esqueléticas em beliches, incapazes de se moverem; cadáveres empilhados por todo o campo que tresandavam a putrefação”.
Como historiadora, Anne Sebba sempre se interessou pelo Holocausto e considera que não se pode ser um historiador do século XX, sem abordar a sua “maior calamidade”.
Anne Sebba fez questão de afirmar que, não sendo sobrevivente nem uma criança do Holocausto, considera que “há uma história por contar”, nomeadamente sobre Bergen-Belsen.
“Tentei não escrever um livro femininista, acho desnecessário. Por outro lado, em Auschwitz, as mulheres estavam separadas dos homens e a investigação atual começou a refletir por que razão a experiência das mulheres era diferente da dos homens, sem ter, necessariamente, sido pior, embora em alguns aspetos o fosse.”
A historiadora recordou a separação das mães das suas filhas adolescentes, que ficavam carentes do desvelo materno. “As jovens, por exemplo, confrontavam-se sozinhas com o seu ciclo hormonal, já que as mães eram, normalmente, encaminhadas para as câmaras de gás.”
“As mulheres não eram autorizadas a usar roupa íntima, e rapavam-lhes o cabelo, o que é a maior das humilhações para as mulheres, e é preciso contextualizar esta deprimente situação na mentalidade época."
A investigação permite à historiadora enumerar as principais instrumentistas da orquestra feminina, referindo número de prisioneira, nacionalidade, data de nascimento e morte, e o instrumento que tocavam, assim como o seu repertório - um total superior a "200 obras, das quais cerca de 12 eram marchas."
Compositores como Mendelssohn, por ser judeu, Chopin, por ser polaco, e Beethoven, por “ser grande de mais para intérpretes judias ‘inferiores’”, eram proibidos, mas algumas mulheres “desafiavam o sistema nazi e tocavam-nos [às escondidas], fazendo um esforço para recuperar algo do que significava ser humano e manter o desejo de viver”.
À Lusa, Anne Sebba afirmou que”a situação vivida nos campos de concentração nazis desafia os limites da imaginação de horrores. É tudo ilógico”.
“Parece ilógico os nazis terem colocado um piano de cauda em Auschwitz, ou terem treinado mulheres com homens, quando o contacto entre sexos era estritamente proibido. Se tudo isto fosse ficcionado, ninguém acreditaria, mas tudo isto aconteceu e eu até aceito que quem ler o meu livro, diga ‘isto não tem lógica’”.
Anne Sebba garante o “rigor académico” da sua narrativa com “fontes documentais concretas”.
Para escrever “A Orquestra Feminina de Auschwitz”, Anne Sebba realizou entrevistas a testemunhas, nomeadamente a sobreviventes que fizeram parte da orquestra, e visionou depoimentos preservados por diferentes instituições, cujo objetivo é o estudo do Holocausto e manter viva a memória da “maior calamidade” do século XX.
“Não quis escrever uma história sensacionalista. É suficientemente triste para a enfatizar com adjetivos. Não era preciso. Procurei escrever de uma forma corrente, apesar de ser tão difícil acreditar que aquilo de facto se passou."
"Devemos aprender as lições da História, sejam elas quais forem. Tentar que não se repitam”, disse a investigadora à Lusa.
Questionada se o conhecimento da História pode prevenir erros futuros, Anne Sebba afirmou: “Veja-se como o mundo está, atualmente. Tenho de dizer que não.”
“A única lição da História é que não há lições, há muitas variáveis e circunstâncias muito diferentes, mas eu diria que se começa a perceber, não digo a desculpar, mas a compreender como se entrou nesta confusão horrível [II Guerra Mundial]. Talvez vejamos, agora, de forma mais clara.”
“Espanta-me que continuemos a repetir as situações. E sabemos que a guerra não resolve as questões, apenas se cria mais sofrimento", disse Anne Sebba à Lusa. "Lamento profundamente. Não aprendemos nada para prevenir as guerras."
A historiadora Anne Sebba, 73 anos, foi jornalista na agência noticiosa Reuters, realizou documentários para a BBC Radio e é autora, entre outras obras, de de uma biografia de Wallis Simpson e de “Les Parisiennes: How the Women of Paris Lived, Loved and Died under Nazi Occupation”.
Mais recentemente, escreveu “Ethel Rosenberg: The Short Life and Great Betrayal of an American Wife and Mother”.
Atualmente é administradora do National Archives Trust, do Reino Unido, em Kew, no Surrey, membro da Royal Society of Literature e investigadora sénior do Institute of Historical Research.
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