Escrita em 1979, a obra retrata aquela que foi “a mais bela madrugada” vivida na redação de um jornal diário de Lisboa.
A edição do dia 25 está fechada, a primeira página é obra do diretor, o ambiente é de alguma crispação, há ali jornalistas que ousam pensar. A revolução entra pela redação trazida pelos “ilustres tipógrafos”, vozes que o senhor diretor, fascista, como convinha, tenta calar com a desculpa de que “é preciso salvar o jornal”.
No palco, está lá tudo: as máquinas de escrever, o velho transístor, o tabaco espalhado, muitas folhas, o telex, a 'menina' da agenda, que anda enrolada com o sabujo do chefe de redação, a jornalista idealista, o Torres - o revolucionário, as saias abaixo do joelho, os cabelos presos, os pulôveres aos quadrados, o colete reluzente do senhor diretor e, claro, o senhor engenheiro, o homem do dinheiro.
Pelo palco circula a Sara Mago. É ela que apresenta a peça, que fala para o público, “uma cronista de um outro movimento” que há em palco, do jornalismo de hoje.
A ação corre mas a cena é invadida pelo Torres, esbaforido, que manda parar a peça. Já não é o Torres que fala, é Camilo, jornalista do Público.
No palco, já não é 1974. O ano de 2024 regressou e corre na rua um boato: “O jornalismo morreu”, anuncia Camilo, descrevendo que há colegas a desaparecer, a cair para o lado, outros a soro e ninguém sabe nada.
O silêncio dura pouco e os atores voltam a si, são novamente jornalistas e falam de algo que não sabem o que é, afinal: “O Marques Mendes não anunciou nada, não houve comunicados, nem chegaram mensagens de WhatsApp”, ouve-se. É preciso saber o que se passa.
“O que diz a Lusa? E o Expresso? A fonte de Belém ainda não disse nada? E a Entidade Reguladora da Comunicação, será que é desta que diz alguma coisa? O Correio da Manhã fala em ‘jornalistas zombies’”.
Mas está tudo doido? Já não é o sabujo que questiona mas Simão, o jornalista da Lusa que se recusa a aceitar a morte do jornalismo e que quer continuar a peça: “Há um grupo, que é fictício, de jornalistas, que se junta para montar 'A Noite', mas entretanto, no sentido alegórico, corre que o jornalismo está para morrer e, durante a peça, 'a coisa dá para o torto' e aparece o boato de que o jornalismo morreu”, explicou à Lusa Simão Freitas, que juntamente com João Gaspar criou a dramaturgia desta nova Noite.
“É também exercício de autocrítica, sobre que jornalismo nos estão a obrigar a fazer. Há um grito de alerta para a perda de controlo editorial, para as administrações, para os baixos salários, a precariedade. Estamos num período em que o tempo é tão frenético e as condições laborais tão deterioradas que começamos a trabalhar vergados. Nós não queremos trabalhar mais vergados”, salientou o jornalista.
A própria “criação do grupo de teatro” faz parte da dramaturgia: “O grupo é fictício, há jornalistas - ou melhor -, atores que fazem mais do que um papel, mas não é por falta de gente, é porque nós estamos cada vez mais proletários enquanto classe, temos de fazer tudo, tornam-nos autómatos. A ideia do jornalismo como uma profissão intelectual, liberal, perdeu-se, porque temos é de produzir, produzir e produzir."
Esta "Noite", no entanto, é também um grito de liberdade, de esperança e “tem muito do 25 de Abril” até porque, salientou Simão Freitas, “só se consegue fazer uma peça com este radicalismo, porque aquela noite trouxe a liberdade”.
"E também só a conseguimos fazer da forma que fizemos, com o nível de crítica, análise, de radicalismo nos termos que fizemos, porque acreditamos que o jornalismo não está morto. Não está. Nós não desistimos, ninguém quer baixar os braços e ir para casa dedicar-se a outra coisa qualquer, nem queremos continuar neste jornalismo que criticamos”, declarou.
"A Noite", pelo Grupo de Teatro Jornalistas do Norte, estreia-se na madrugada do dia 25 de Abril, hora em que começa ação da peça escrita por José Saramago, e sobe novamente ao palco do Constantino Nery nos dias 27 e 28 deste mês, estando previstas ainda apresentações em Vila Real, Ourém, Aveiro, Coimbra, Santarém e Leiria.
Em palco, nesta nova "Noite", estão Aline Flor, André Borges Vieira, Camilo Soldado, Catarina Ferreira, Dora Mota, Francisco D. Ferreira, João Gaspar, João Nápoles, Joana Ascensão, Jorge Eusébio, Luísa Marinho, Maria João Monteiro, Pedro Emanuel Santos e Simão Freitas. A encenação é de Jorge Louraço Figueira e Leonor Wellenkamp Carretas.
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