Alison Mosshart e Jamie Hince andam nisto há 16 anos e a forma como se mexem em palco não deixa grandes dúvidas. Se na viragem do milénio o projeto da norte-americana e do britânico ficou entre as revelações do rock da altura, agora os The Kills são dos mais dignos sobreviventes de uma cena que deixou muitos pelo caminho ou que viu outros cada vez mais longe da relevância da estreia (síndrome The Strokes ou Bloc Party).
Ao contrário de tantos contemporâneos, a dupla que deu que falar com "Keep on Your Mean Side" (2003) nem tem tentado mudar muito de disco para disco, assim como nunca quis, de resto, alargar por aí além as fronteiras de um rock a meio caminho entre o sedutor e o visceral. É verdade que o quinto e novo álbum, "Ash & Ice", editado em junho, reforça as contaminações eletrónicas do que começou com um formato mais austero, mas no essencial os The Kills continuam iguais a si próprios.
Essa identidade vincada, que para uns poderá equivaler a conservadorismo (de resto igualmente apontado ao rock das últimas décadas), também é marca de uma discografia coerente como poucas, tanto que em palco clássicos e temas recém-estreados partilham protagonismo sem dilemas. Foi isso que se (ou)viu no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, ao longo de hora e meia durante a qual desfilou boa parte do novo álbum e obrigatórias revisitações aos anteriores (ainda que nem sempre as mais óbvias).
Não foi preciso mais de alguns segundos para o duo - acompanhado por um baterista e um músico que foi do baixo aos teclados - ter o público na mão. Efusivamente aplaudidos à entrada, com "Heart of a Dog", um dos temas recentes, os The Kills mostraram logo ao que vinham ao dispararem uma versão musculada do mais antigo "U.R.A Fever", com gritos em vez dos sussurros do formato original.
Quem passou pelo Coliseu dos Recreios na semana passada e esperava ter encontrado uma PJ Harvey mais enérgica e explosiva teve aqui remédio santo: embora não recusem acessos contemplativos, Mosshart e Hince continuam obstinadamente agarrados à distorção e ao frenesím rítmico, à garra e à vertigem das guitarras - e de uma bateria que ao vivo faz estragos comparáveis, ampliando o poderio de uma dupla que já seria mais do que suficiente para dominar uma plateia ansiosa.
Ele, ela e as canções
É só rock n' roll, mas não haverá muitos que o tenham feito tão bem nos últimos anos. A famigerada tensão sexual em palco parece ser história de capítulos mais antigos, mas não deixa de ser admirável como a vocalista e o guitarrista (que às vezes também canta) se complementam.
Ela, mais eufórica, acedeu ao headbanging em boa parte dos temas e o seu cabelo louro, longo e esvoaçante foi um espetáculo por si só - misto de tentação e desafio para fotógrafos a valer mais do que muitos elementos cénicos (nada a apontar ao belo trabalho de iluminação nem às imagens de um vulcão ou de espirais projetadas no fundo do palco, de qualquer forma). Ele, mais contido, não deixou de dar conta do gozo em tornar a guitarra numa das forças da noite, sobretudo nos momentos instrumentais em que Mosshart lhe cedeu protagonismo para dançar ou repousar mais atrás.
Felizmente, os ocasionais episódios com Hince em destaque nunca escorregaram para cenas de jam session ou virtuosismo balofo, com um equilíbrio de ambientes que também se traduziu num alinhamento a alternar descarga e introspeção. E se não foi surpresa ver que clássicos como "Future Starts Slow", "Tape Song" ou "Black Baloon" foram recebidos de braços abertos - à semelhança de outras atuações do grupo por cá -, foi melhor confirmar que muitas das novas canções não só têm outro impacto ao vivo como conseguiram um acolhimento comparável às antigas. "Doing it to Death" até pode muito bem ter sido o pico da noite, um daqueles singles que parece ter entrado diretamente para o cânone da banda, a julgar pelo alvoroço. Não que a mais acelerada e também ótima "Siberian Nights" tenha ficado a dever-lhe muito, num concerto que teve outros novos trunfos em "Impossible Tracks" ou "Hard Habit to Break", ambos vendavais sónicos, ou na beleza crepuscular de "Echo Home", cantada a meias.
Especialmente surpreendente, "That Love", outra canção da colheita de 2016, abriu o encore com Mosshart sozinha em palco, tendo a guitarra acústica como companhia, para relembrar que os The Kills são tão bons nas baladas como no campeonato agreste. E esta permitiu dar atenção a uma voz que, noutros temas, pareceu ter ficado ocasionalmente sufocada pela artilharia instrumental.
Numa atuação sem deslizes, só foi pena que os The Kills não tenham incluído mais três ou quatro temas no alinhamento - sentiu-se a falta de "The Good Ones" ou "Last Day of Magic", do material antigo, ou de "Let It Drop", uma das melhores (e mais refrescantes) faixas de "Ash & Ice". Mas talvez estejam guardadas para o concerto do Porto, uma vez que a dupla repete a dose esta sexta-feira num Hard Club já esgotado.
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