A história do rap em Portugal começa a ser contada em 1994, ano em que foi editada a coletânea “Rapública”, da qual faziam parte os temas “Não sabe nadar”, dos Black Company, e “A Verdade”, de Boss AC. Mas o autor de “Hip Hop Tuga – Quatro décadas de rap em Portugal”, Ricardo Farinha, foi mais longe.
“Quis também focar-me na pré-história, porque acho que também ajuda a explicar como é que chegámos depois àquela fase dos anos 1990, que conhecemos melhor todos”, disse, em entrevista à Lusa.
O livro, editado pela Iguana, começa pelo período “mais desconhecido da história do rap em Portugal”, de 1983 a 1994.
“Há pessoas importantes naquela década [de 1980] que não chegaram a gravar nada, mas que foram determinantes para que outros pudessem gravar, por exemplo”, referiu.
O trabalho de pesquisa, feito com recurso à internet, a entrevistas, à leitura de jornais e revistas da época e de livros sobre a matéria, escritos por sociólogos e antropólogos, levou-o até 1983.
“Foi o primeiro ano em que identifiquei rap e Portugal na mesma frase”, contou.
A descoberta foi feita na plataforma online discogs, “uma espécie de IMDb para discos”, quando Ricardo Farinha já estava “na fase final de limar arestas” e de tentar perceber se não lhe tinha falhado nada que quisesse incluir no livro.
“Recorri à base de dados para ver todos os discos catalogados como rap oriundos de Portugal. E estava lá esse disco [“Os Lusitansos”]. Depois até comprei o disco online, porque queria ter essa peça inaugural”, partilhou.
A ligação de Ricardo Farinha, nascido em 1995, ao rap começou em pequeno, enquanto ouvinte. Os pais ouviam em casa o álbum “Redefinições”, dos Da Weasel, “em ‘repeat’”, e na rádio passavam com frequência “Baza, baza”, de Boss AC, e “Re-Tratamento”, dos Da Weasel.
Além disso, em Queluz, “um subúrbio de Lisboa bastante ligado à cena rap e com uma grande comunidade afrodescendente”, onde cresceu, sempre ouviu muito rap na escola e na rua.
Lembra-se que quando tinha 10 ou 11 anos, ouvia-se muito os norte-americanos Eminem e 50 Cent, mas a geração a que pertence “tem uma ligação muito maior ao rap português e só depois é que se faz a ponte com o rap norte-americano”.
Foi uma época em que foram editados álbuns como “Pratica(mente)”, de Sam The Kid, “Ritmo, Amor e Palavras”, de Boss AC, “Serviço Público”, de Valete, ou o já mencionado “Redefinições”.
Além disso, a série de televisão “Morangos com Açúcar” - “um fenómeno na altura” - tinha rap na banda sonora, como Expensive Soul, Mundo Secreto, NBC, e foi também “uma porta de entrada para muita gente” no rap português.
Mais tarde, Ricardo Farinha começou a escrever sobre rap, tendo ao longo dos últimos anos entrevistado muitas das pessoas que participam no livro sobre outras coisas, como os seus álbuns, por exemplo.
“Tinha essa proximidade com o meio, conhecia os protagonistas. Já tinha essa bagagem. Mas depois tive de fazer uma pesquisa mais intensiva”, recordou.
O trabalho de pesquisa levou-o a reforçar algumas das ideias que já tinha, como o facto de ser um meio predominantemente masculino.
“São muito poucos os nomes femininos, infelizmente. Mas tentei dar mais destaque a certas ‘rappers’ que apareceram nos últimos anos. Há uma percentagem maior de artistas femininas na última parte do livro, porque apareceram várias e eu também quis tentar alavancar um bocadinho por aí. Tentei ser inclusivo nesse sentido e noutros também”, disse.
Além disso, embora o rap continue a ser muito associado aos centros urbanos, é “um fenómeno nacional”.
“Sabia que o Algarve, e em específico Quarteira, teria um foco importante no livro, porque há muitos artistas de várias gerações que foram aparecendo de lá. Mas não tinha noção que ia ter uma preponderância tão grande”, referiu.
O Miratejo, em Almada, é tido como “o berço” do rap em Portugal, mas Ricardo Farinha identificou pessoas “que em meados dos anos 1980 já estavam a rimar e a dizer rap, de forma informal, no Porto e no Algarve”.
“O Miratejo foi muito importante, especialmente na zona de Lisboa e depois contagiou outros focos, mas ao mesmo tempo já havia pessoas a fazer noutros sítios do país, numa altura em que a comunicação e o acesso à informação eram muito diferentes”, salientou.
No livro, Ricardo Farinha quis também “reforçar o papel do rap feito em crioulo, e da maneira como no início todos os artistas rimavam em inglês, mas com o impacto do [‘rapper’ brasileiro] Gabriel o Pensador houve uma transição natural e passou tudo a fazer letras em português”.
Para quem “não percebe o hip hop”, subcultura nascida há 50 anos em Nova Iorque e que inclui quatro vertentes: rap, graffiti, ‘breakdance’ e ‘djing’, o livro inclui, no início, um glossário, no qual são explicadas palavras como ‘digging’, ‘hip hop head’, ‘posse cut’, ‘sample’ ou ‘writer’.
A apresentação de “Hip Hop Tuga – Quatro décadas de rap em Portugal” está marcada para 21 de outubro, na Crack Kids, em Lisboa. Depois, haverá apresentações noutros locais do país.
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