A obra de Anne Caufriez, que presidiu a Sociedade Europeia de Etnomusicologia, traduz décadas de investigação da música tradicional portuguesa, de Trás-os-Montes à Madeira, abordando casos tão distintos como a música de Porto Santo, as polifonias das mulheres de Soajo, em Arcos de Valdevez, e de São João do Campo, em Terras de Bouro, ou a influência judaica na tradição trasmontana.
Doutorada em música tradicional portuguesa, Caufriez é responsável por obras de investigação, entre livros, artigos e álbuns de recolhas, como "Tras-os-Montes - Chants du blé et cornemuses de berger" ("Trás-os-Montes: Canções do trigo e gaitas-de-fole de pastor"), editado pela Radio France/Ocara, "Le chant du pain: Trás-os-Montes, recherches sur le romanceiro" ("A canção do pão: Trás-os-Montes, investigações sobre o romanceiro") e "Romances du Trás-os-Montes: mélodies et poésies", ambos publicados pelo Centro Cultural Gulbenkian, em Paris.
A dedicação de Anne Caufriez à música tradicional portuguesa teve início em 1967, em Cascais, quando conheceu o etnomusicólogo corso Michel Giacometti, conhecido pelo trabalho de recolha pelo país com a colaboração do compositor Fernando Lopes-Graça, e pela série documental “Povo que canta”, realizada por Alfredo Tropa.
Giacometti fazia, na altura, a pesquisa dos cantos de pescadores na costa portuguesa, que Anne Caufriez ouviu pela primeira vez e considerou extraordinários. A revelação levou-a ao trabalho com o etnomusicólogo e o breve período de férias acabou por se transformar numa permanência de três anos em Portugal, de que percorreu sobretudo o interior centro e norte.
Para Caufriez, foi a entrada num processo de investigação, mas também de salvaguarda da tradição musical e, em simultâneo, de descoberta das condições de vida e da realidade da ditadura, como recordou mais tarde no ensaio "Giacometti, a etnomusicologia que minou o regime".
Durante esses três anos, quando ia a Paris - recorda nesse texto -, levava mensagens aos portugueses "refugiados do salazarismo". No regresso, vestia-se "deliberadamente como uma rapariga inocente" para conseguir passar na fronteira "o maior número possível" de publicações proibidas, livros e jornais com essas "novas ideias políticas" do Maio de 68, "livros de etnólogos, sociólogos e até de psiquiatras que falavam dos danos psicológicos do colonialismo".
Terminado o trabalho com Giacometti, Anne Caufriez regressaria a Portugal na década de 1970, já depois do 25 de Abril, para a tese de doutoramento que concluiu em 1982, na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris. Na altura, centrou-se no Nordeste Transmontano e no concelho de Miranda do Douro, em particular.
Mais tarde, nos anos de 1980, como investigadora do Laboratório de Etnomusicologia do Centre National de la Recherche Scientifique, acabaria por expandir a pesquisa a diferentes regiões de Portugal, do Minho às ilhas da Madeira e Porto Santo. A pesquisa do romanceiro levou-a ainda a atravessar o Atlântico e a estudar as expressões musicais do Nordeste brasileiro, primeiro, e das regiões indígenas do Amazonas, depois, para onde viajou recorrentemente entre 2001 e 2013.
Anne Caufriez nasceu em La Bouverie, na região de Hainaut, na Bélgica, em 22 de maio de 1945. Estudou História da Arte e Musicologia na Universidade Livre de Bruxelas. Completou o pós-doutoramento na Universidade de Lovaina, como investigadora do Departamento de Antropologia. Foi agregada da Sorbonne, em Paris, onde dirigiu a sua área de investigação. Como conservadora, esteve à frente do Departamento de Instrumentos Populares e não Europeus do Museu de Instrumentos Musicais de Bruxelas.
O interesse pela etnomusicologia aconteceu cedo na sua vida, ainda estudante, quando atravessou o Saara até ao oásis de Djanet e seguiu para o planalto de Tassili, na Argélia, onde procurava pinturas rupestres. No caminho, cruzou-se com pastores e tribos nómadas. Descobriu os instrumentos de corda dos tuaregues, o alaúde gunbri dos hauças, a flauta dos fula, a harpa dos griots. E de imediato percebeu como a música testemunhava modos de vida e de pensar dos "povos malsucedidos" e das "minorias esquecidas".
Foi sempre por eles que trabalhou. Percorreu quilómetros a pé no Nepal até aos campos de refugiados tibetanos, explorou o vale de Katmandu e, na Austrália, foi ao deserto conhecer aborígenes. Na Indonésia, atravessou florestas para chegar aos Toradjas. Em Java, testemunhou a celebração da deusa do arroz, na dança das mulheres.
De cada etapa deixou testemunho em livros, artigos e discos de recolhas, num trabalho de campo recorrentemente feito com Michel Plumley, como aconteceu na Indonésia e em Portugal. Muitas dessas recolhas foram premiadas, como "Kantjil et la guerre des Tigres", com música de Java, distinguida pela Académie Charles-Cros.
A sua bibliografia, porém, é dominada por obras dedicadas à música tradicional portuguesa, como os dois volumes da tese de doutoramento, "La perenité du romancero dans la musique paysanne du Trás-os-Montes", a monografia "Quelques aspects de la musique vocale mirandaise", o catálogo da exposição dedicada aos instrumentos tradicionais ibéricos, realizada no museu de Bruxelas.
A estes juntam-se os muitos artigos de investigação resultantes das recolhas musicais da tradição oral e do contacto com as comunidades como "Raízes musicais da Terra de Miranda", "As polifonias salvas da água", sobre os antigos habitantes de Vilarinho da Furna, aldeia submersa pela barragem do Rio Homem, no Gerês, e "Musique traditionnelle de Porto Santo", numa edição dos arquivos do Museu de Etnografia de Genebra.
Sobre o fundador dos Arquivos Sonoros Portugueses concluiu este ano "Michel Giacometti, une vie aux sources de la mémoire", obra que virá a ser publicada pela Tradisom. Participou igualmente na nova edição da Filmografia de Michel Giacometti desta editora portuguesa.
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