Há mais de 40 anos que Stephen King é um dos escritores contemporâneos da área do fantástico (e não só) mais conceituado e popular. E, naturalmente, um dos mais requisitados pelo cinema e televisão.

Esta febre da “galinha dos ovos de ouro” começou em 1976 com a versão de Brian De Palma do seu bestseller “Carrie”. O escritor desprezou automaticamente a adaptação (como faria com outras), opondo-se à crítica entusiástica e ao culto que viria preservar o seu estatuto de obra-prima até aos dias de hoje (mesmo frente a um "remake" produzido em 2013), mas o repúdio não fez parar a ferrovia de conversões, umas atrás das outras, obrigando-o, a cada novo livro, a vender automaticamente os direitos de adaptação.

Foram muitos os que tiveram à mercê do paladar e ao repúdio de King e outra adaptação merece aqui especial destaque: "The Shining". Os direitos foram encaminhados para Stanley Kubrick (não fizeram por menos!), que pegou no livro e adaptou-o "à sua maneira" e estética, transformando a visão paranormal e fantasiosa do escritor num estilístico e subtil filme de terror.

A história remetia-nos para um escritor, Jack Torrance (Jack Nicholson), que aceitava um trabalho como segurança no histórico, remoto e fechado hotel Overlook, durante o rígido inverno nas Montanhas Rochosas do Colorado. Partindo com a mulher Wendy (Shelley Duvall) e o seu filho com habilidades psíquicas Danny (Danny Lloyd), o esperado e pacífico retiro onde Jack esperava começar a escrever o seu novo romance era, afinal, um depósito de fantasmas e outras entidades sobrenaturais que o levarão à loucura.

Em 1980, as críticas foram variadas e com a ajuda de um irado King por ver o seu material alterado e maleado às aspirações de Kubrick, "Shining" chegou mesmo às nomeações para os Razzies (o equivalente aos Óscares, mas para os piores filmes). Até hoje, o escritor odeia a adaptação, o que o levou a apoiar uma muito criticada minissérie de 1997, mas felizmente o desprezo de outros evoluiu e o trabalho de Kubrick tornou-se e mantém-se como um dos mais influentes no género.

Da "birra" de King materializou-se uma sequela literária em 2013: "Doutor Sono" seguia o percurso de Danny e, como é óbvio, tendo em conta a mais primária lei capitalista, há que render a dita “galinha”. E assim chegamos ao nosso encontro com esta meia sequela, meio "reboot" de “The Shining”, com Ewan McGregor como protagonista (pergunta retórica: porque não recuperar Danny Lloyd?)

Para o efeito de transladação, o estúdio convenceu o muito em voga Mike Flannigan (que já se havia aventurado no universo de King com “Jogo Perigoso” da Netflix). Digamos que o seu trabalho aqui foi um pouco ingrato – estabelecer uma espécie de utopia entre o livro e o legado cinematográfico da obra de Kubrick. O resultado talvez seja mais inclinado para o primeiro fator, visto que “De Stephen King - Doutor Sono” (é mesmo assim o título em Portugal) preserva o tom rocambolesco de King.

Convém frisar que competir com o original é um ato em vão: Kubrick executou um filme disperso, calculado e, na sua essência, misterioso, o que suscitou teorias de todo o género (basta ver o documentário “Room 237”, de Rodney Ascher). Por sua vez, “De Stephen King - Doutor Sono” é uma obra fechada, tecnicamente eficaz mas induzida numa espécie de anonimato quanto ao simbolismo imagético. E depois existe o frenesim tecnológico – o CGI para “branquear” o horror.

Ao contrário de “Exterminador Implacável: Destino Sombrio”, com o qual partilha a mesma data de estreia, não são os momentos de saudosismo que se revelam mais preciosos: quando “De Stephen King - Doutor Sono” não quer ser “The Shining 2” é que a sua personalidade é desvendada, obviamente tratada com dignidade por uma "vamp" Rebecca Fergusson enquanto vilã de serviço.

O que fica é um filme competente mas a precisar de alguma personalidade. Ao realizador faltou a capacidade de se desviar dos eixos estabelecidos por King e, sobretudo, o peso dos que o antecederam. O que nos leva a pensar num filme com certos desvios narrativos que possivelmente funcionariam mais como série "à la Netflix" (e sabemos que Flannigan causou sensação nesse formato com “A Maldição de Hill House”) do que propriamente uma longa-metragem de duração estendida.

Mas… pelo menos não é um “It: Capítulo 2” [ler crítica], outra adaptação de King que andava “às aranhas” com o seu material.

"De Stephen King - Doutor Sono": nos cinemas a 31 de outubro.

Crítica: Hugo Gomes

Trailer: