Em reclusão, atrás de um monitor, navegando na internet, podemos ser a melhor ou a pior versão de nós mesmos, acreditando estar afastados de qualquer tipo de represálias que não possam ser ignoradas pelo simples carregar do botão de desligar. Podemos ser uma pessoa ou várias, espectadores ou "trolls" activos, vítimas ou predadores.

Na sua sexta longa metragem, Safy Nebbou adapta o livro "Celle que vous croyez", de Camille Laurens, uma novela em estrutura "matrioska", onde várias narrativas e pontos de vista se apoiam ou se contradizem, revelando personagens dentro de personagens, explorando a mitomania e fabulação que se escondem na dependência física e emocional de ter "likes" e viver relações virtuais.

Juliette Binoche é Claire, uma professora universitária de literatura de 50 anos, com complexos quanto à sua idade e aparência. Abandonada pelo seu marido, que a trocou por uma mulher muito mais nova, vê-se cada vez mais atraída por homens jovens. Quando Ludo (Guillaume Gouix) termina a relação dos dois, Claire enceta uma fantasia, iniciando um processo de "catfish" e criando uma nova "persona" on-line: Clara Antunes (nome curiosamente baseado em António Lobo Antunes).

Fixando-se numa obsessão perigosa, procurando aliviar-se da solidão e mantendo um objectivo vingativo que se revelará mais tarde, "Clara" faz amizade com o companheiro de casa de Ludo, Alex (François Civil), que, dadas as fotos que vai recebendo, acredita estar a trocar mensagens com uma rapariga de 24 anos. Sem nunca se terem realmente encontrado, desenvolvem uma relação amorosa.

Com o suspense de um "thriller", a quietude de um drama romântico e ligeiros toques de comédia, a história é-nos apresentada pelo ponto de vista de Claire. Em sessões de psiquiatria, ela descreve a sua visão “genuína” dos momentos passados com Alex, procurando reconciliar os sentimentos de culpa e alimentando a carência. O olhar passivo da Dra. Bormans (Nicole Garcia), de trejeitos manipulados para impedir os seus próprios comentários, é reflexo do nosso próprio olhar, enquanto vamos percebendo a seriedade dos atos de Claire ou Clara.

Dissecando a sua própria ficção, Claire é uma personagem que temos consciência de que nos está a manipular. O realizador não se recolhe também, explorando um conto dentro de um conto, deixando por momentos de lado a relação virtual, para a efetivar em supostos encontros reais, deixando-nos na dúvida se estamos a assistir à verdade ou à aspiração de Claire.

Quando a verdade se revela e percebemos a causa desta sanidade nublada em angústia, completamente desfragmentada, ficamos desconfortavelmente simpatéticos com a sua representação tripla, numa intrincada relação de "personas".

Com a sua auto-sabotagem e a excitação das suas ações, Juliette Binoche é sublime e subliminar, deixando-nos enamorados quando sabemos que não devíamos, detestando-a quando começamos a sentir pena. Mas quem é que estamos a apreciar e a julgar em cada momento? Binoche, Clara ou Claire?

"Clara e Claire": nos cinemas a 26 de dezembro.

Crítica: Daniel Antero

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