A proposta que este "Cats" oferece é de uma tamanha monstruosidade que desfere o olhar e a nossa perceção de espaço, para além de trazer consigo uma das questões recorrentes deste cinema cada vez mais tecnodependente: onde começa o ator e acaba o boneco computorizado?

Em 2019, descobrimos o CGI como fonte de resolução para problemas de algumas obras. Passo a explicar: vimo-lo usado para o enredo de filmes, como no "rejuvenescimento" de Robert De Niro no épico criminal de Martin Scorsese (“O Irlandês” [ler crítica]) ou no joguete "doppelganger" modo Will Smith em “Projeto Gemini” [ler crítica]).

Em “Cats”, o CGI funciona como um arriscado capricho para transformar, de forma viável, os atores em felinos. O resultado não é o esperado: esta união de forças oferece-nos quimeras grotescas, pesadelos para quem sofre, sobretudo, do chamado “uncanny valley", o incómodo mental perante algo que tenta ser humano mas não é.

Se fosse a escolha gráfica do filme um pormenor de paladar, a “coisa” poderia ter sido salva, mas esta dependência de um CGI disfuncional tem uma garantia de validade de fácil expiração tendo em conta os constantes avanços neste terreno.

Colocando de parte o risco que não funciona de modo algum, o filme toma ainda decisões suicidas para nos apresentar o espetáculo musical de Andrew Lloyd Webber de forma crua.

O que aqui temos é a decoupagem metida a martelo por cortes rápidos sem noção de espaço que limitam ainda mais a performance dos “atores” (?). Joga-se por entre musicalidades atrás de musicalidades, sem esforço em criar um clímax, uma personagem que valha a nossa empatia (a protagonista incorporada pela bailarina Francesca Hayward é uma mera inocuidade como tal) e sem tempo para nos deixar “respirar” perante a enxurrada de informação.

Este é um universo cuidado, rico nos palcos da Broadway (foi aí que se tornou célebre, apesar de ter estreado em Londres em 1981) e nas suas digressões mundiais, rodeados de talento embutido nas coreografias, nos décors, na caracterização destas personagens que são apresentadas como desafios de credibilidade. Na adaptação ao cinema tornam-se elementos descartáveis, pois o realizador Tom Hooper abriu uma verdadeira “caixinha de Pandora” e libertou todo o mal ali entranhado.

São os sinais dos tempos, uma Hollywood minimalista e dependente das falsas possibilidades ilimitadas dos CGIs e derivados, perdendo-se a "carne", a emoção verdadeiramente trazida pelos atores e adquirindo com isto a farsa egoísta de quem se submete a um mero videojogo.

"Cats" é assim a extensão da ideia de cinema defendida em tempos por Robert Zemeckis, mesmo naquela sua fase "motion capture". Um teor de artificialidade que afoga o encanto detido pelo “vozeirão” de Jennifer Hudson. Adornos incompreensíveis.

"Cats": nos cinemas a 26 de dezembro.

Crítica: Hugo Gomes

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