"O Brasil indígena é historicamente negado, silenciado, assassinado. Mas é justamente esse Brasil que sai exaltado de Cannes", disseram os cineastas à agência Lusa, numa declaração por escrito, depois do anúncio da atribuição do prémio especial do júri, da secção Un Certain Regard do Festival, ao filme, que teve aqui a sua estreia.
"São os Krahô quem ocupou este espaço com sua língua, seu corpo e seus espíritos", dizem os cineastas, num depoimento escrito, enviado à agência Lusa, sobre o seu mais recente filme.
"A importância deste reconhecimento transcende o gesto cinematográfico, até porque existem hoje, no Brasil, dezenas de diretoras e diretores indígenas que estão contando suas histórias e sendo donos de suas imagens. É maravilhoso estarmos aqui e é uma pequena revolução, mas a grande revolução terá acontecido quando esses cineastas estiverem ocupando também estes lugares", acrescentam Salaviza e Nader Messora, sobre o reconhecimento do filme em Cannes, e a importância das comunidades indígenas e dos seus testemunhos.
Na quarta-feira, a equipa do filme juntou-se na passadeira vermelha para exibir cartazes em protesto “pelo fim do genocídio indígena” e pela “demarcação das terras dos povos autóctones”, no Brasil. No final da sessão de estreia, a equipa foi aplaudida e houve ainda um momento de cânticos “Fora Temer”.
Em declarações à agência Lusa, quando da seleção para o festival, onde já havia vencido a Palma de Ouro com a curta-metragem “Arena”, em 2009, João Salaviza não escondeu a satisfação.
"É um filme feito por duas pessoas no meio do mato, sem qualquer coprodução francesa, com 80 mil euros de apoio do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], e estar a ombrear com outros filmes da competição é fantástico", disse o realizador.
Descrito pelo Hollywood Reporter como “um dos menos ortodoxos títulos” a apresentar-se na secção Un Certain Regard, trata-se de uma “mistura ligeiramente dramatizada de facto, ficção e estudo de campo antropológico”.
O filme foi rodado durante nove meses, em 16mm, sem equipa, na aldeia Pedra Branca, no estado de Tocantins, no Brasil.
“Não há espíritos ou cobras esta noite e a floresta em redor da aldeia está sossegada. Ihjãc, de 15 anos, tem pesadelos desde que perdeu o pai. É um Krahô indígena do norte do Brasil. Ihjãc caminha pela escuridão, o seu corpo suado move-se com receio. Um cântico distante atravessa as palmeiras. A voz de seu pai chama por ele através da cascata: é hora de organizar o festim funerário para que o espírito possa partir para a aldeia dos mortos. O luto deve cessar”, pode ler-se na sinopse disponibilizada pelo festival.
O texto acrescenta: “Negando o seu dever e para poder escapar o processo crucial de se tornar um xamã, Ihjãc foge para a cidade. Longe do seu povo e da sua cultura, enfrenta a realidade de ser um indígena no Brasil contemporâneo”.
"Chuva é cantoria na aldeia dos mortos" foi produzido por Ricardo Alves Jr. e Thiago Macêdo Correia, da produtora Entre Filmes, sediada em Minas Gerais, em coprodução com a portuguesa Karõ Filmes e com a Material Bruto, de São Paulo.
O prémio principal da secção Un Certain Regard foi para “Border”, do iraniano Ali Abbasi, enquanto o melhor argumento foi para “Sofia”, da franco-marroquina Meryem Benm’Barek.
A melhor interpretação foi atribuída a Victor Polster, por “Girl”, de Lukas Dhont, e o melhor realizador foi Sergei Loznitsa, por “Donbass”.
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