Demorou, mas chegou. Ou chega já esta quinta-feira. Depois da antestreia mundial na sessão de encerramento festival de Cannes, em maio de 2018, "O Homem que Matou Don Quixote" vai poder ser visto nas salas de cinema portuguesas a partir de 17 de fevereiro, encerrando um capítulo particularmente rocambolesco - ou quixotesco - no percurso de Terry Gilliam.
Projeto sonhado pelo ex-Monty Python desde 1989, esta peculiar adaptação do romance clássico "Dom Quixote de la Mancha" (1605), de Miguel de Cervantes, enfrentou vários problemas de financiamento e elenco ao longo das décadas seguintes.
Pelo caminho, o realizador estreou filmes de culto como "O Rei Pescador" (1991), "12 Macacos" (1995), "Delírio em Las Vegas" (1998) ou "Parnassus - O Homem que queria enganar o Diabo" (2009). Já "Lost in La Mancha" (2002), documentário de Keith Fulton e Louis Pepeque, revisitou a primeira fase desta jornada que se complicaria, anos depois, com o processo judicial que envolveu o produtor português Paulo Branco (cujo pedido de indemnização seria recusado pelo tribunal).
"Estava possuído pelo Quixote. E não tinha muito controlo sobre isso", assegura Terry Gilliam ao SAPO Mag durante uma passagem por Lisboa, a propósito da estreia. "Li este livro enorme e adorei. Dois livros, aliás, que o Cervantes escreveu e escreveu. No final, fiquei completamente apaixonado pelo Quixote mas, ao mesmo tempo, achei que seria impossível conseguir fazer um filme sobre ele".
Para alguma imprensa, que considerou esta coprodução entre a portuguesa UKbar Filmes com Espanha, França, Bélgica e Inglaterra um projeto amaldiçoado, a sua concretização chegou a parecer mesmo um sonho impossível. Mas acabou por ver a luz do dia, depois de décadas nas quais o norte-americano radicado no Reino Unido manteve uma postura obstinada. "A jornada para o terminar não é muito interessante, trata-se de não desistir", assinala o cineasta de 81 anos. "É um pouco como Quixote, é ir a luta e falhar. Levantarmo-nos e falhar outra vez. Não é nada além disso".
O sonhador e o homem prático
Como fazer algo que traduza "um livro extraordinário" para o mundo moderno? Foi esta a questão que esteve na origem do filme, recorda Gilliam. "Começou por ser sobre alguém que trabalhava em publicidade. Trabalhar em publicidade é vender sonhos. Mas Quixote não vende sonhos, ele vive e sonha sonhos, com toda a dor que isso implica. Pareceu-me um bom começo", explica.
"Era o livro ideal para uma série televisiva, mas aí teria de fazer uma série. Tive de encontrar forma de o adaptar para cinema e para aquilo que os filmes fazem. São os livros que enlouquecem o Quixote, livros de cavaleiros, sentimentos nobres, heróis, e os filmes são sobre isso", compara.
Gilliam traz a personagem clássica de Cervantes para os dias de hoje através de uma aventura que junta um realizador de publicidade, Toby (Adam Driver), e um velho sapateiro espanhol que encarnou Don Quixote (Jonathan Pryce) no primeiro filme do protagonista, quando este era um jovem idealista e aspirante a cineasta. A relação da dupla, marcada por visões e delírios, cruza épocas e realidades e torna uma pequena aldeia de "nuestros hermanos" no palco de uma missão de contornos medievais e surreais.
"O sonhador, o louco, e o homem prático com os pés bem assentes na terra. Toda a gente tem esses dois lados, e isso é interessante", diz o norte-americano, avançando que o homem que acredita ser Don Quixote "vê o mundo de uma forma fresca, quase como uma criança".
"Adoro críticas mistas"
Para o ex-Monty Python, a personagem do velho sapateiro é uma forma de deixar um convite aos espectadores. "Tento sempre encorajar as pessoas a encontrar a sua versão do mundo, a olhar para ele com os seus próprios olhos. Porque tudo nos diz que o mundo é assim. Não quero ficar limitado por isso. Quero que as pessoas pensem pelas próprias cabeças e não se sujeitem a dogmas".
Gilliam acredita que "o politicamente correto está a limitar a nossa forma de ver o mundo" e que "as pessoas têm muito medo de ofender, por isso são muito cautelosas com a forma como falam e como se comportam".
O realizador diz-se saturado de "tribos em que as pessoas concordam todas umas com as outras" e para as quais "o resto do mundo está errado".
"O Homem que Matou Don Quixote", no entanto, dificilmente gerará consensos, tal como grande parte da filmografia do seu autor após os filmes dos Monty Python que dirigiu. Mas gostando-se mais ou menos, é claramente um filme de Terry Gilliam, com direito a todas as liberdades ou excessos que moldaram o seu universo - do esmero habitual da direção artística aos contrastes de tom, passando pelo humor e personagens obtusas, numa exploração das fronteiras entre o real e o ilusório.
A mistura não será para todos os gostos, mas o realizador garante não estar muito preocupado com isso. "Adoro críticas mistas. Fico mais contente se metade do público adorar e a outra metade detestar. O que não quero é fazer alguma coisa que toda a gente diga que foi agradável".
Joana Ribeiro, de "uma jovem Penélope Cruz" a uma Dulcineia "pragmática"
Além de Adam Driver e Jonathan Pryce, nos papéis protagonistas, o elenco de "O Homem que Matou Don Quixote" inclui estrelas internacionais como Stellan Skarsgård, Olga Kurylenko, Rossy de Palma ou Sergi López. Mas também há nomes portugueses no filme parcialmente rodado por cá. E se Lídia Franco, Maria d'Aires e Filipa Pinto têm pequenas participações, Joana Ribeiro encarna uma das personagens principais.
"Foi uma daquelas situações em que conheci alguém de quem gostei e admirei genuinamente, e que me surpreendeu constantemente", aponta Terry Gilliam sobre a atriz que escolheu para interpretar Angelica.
"Sabia que o Terry estava à procura de uma jovem Penélope Cruz, por isso vi muitos filmes dela, como o 'Jamón, Jamón' [de Bigas Luna, estreado em 1992]", conta Joana Ribeiro em entrevista ao SAPO Mag.
"Com a Angelica, tratou-se de trabalhar a personagem de Dulcineia de uma forma interessante. Nos livros, é basicamente uma prostituta. E o que Quixote vê nela é um sonho lindo. A Angelica é uma mulher muito pragmática, influenciada pelo Toby para se tornar estrela de cinema", sublinha o realizador.
"Li algumas críticas que a consideravam simplista. Acho que é uma grande personagem" que "não se queixa", contrasta. "Não é uma vítima", acrescenta a atriz que, depois de ter rodado "O Homem que Matou Don Quixote", protagonizou o filme "Linhas Tortas" (2019), de Rita Nunes, e foi a Virgem Maria em "Fátima", de Marco Pontecorvo, entre outras experiências regulares no cinema e na televisão.
Gilliam elogia a capacidade de Ribeiro se integrar num elenco com muitos veteranos. A atriz, por sua vez, partilha que o realizador "é muito claro quando não gosta de alguma coisa. Quando fazemos alguma coisa mal, conseguimos sentir a energia". E ambos se riem a recordar um "batismo de água", uma vez que a primeira cena que Ribeiro filmou incluiu um banho particularmente frio. Outra sequência, a de uma dança de flamenco, é apontada como a mais desafiante para a atriz. Mas não tanto para o realizador. "Eu achava que ela era melhor do que o que ela achava que era", esclarece Gilliam.
Ribeiro agradece a experiência "libertadora" de trabalhar com o norte-americano. "Às vezes sou muito perfecionista e pragmática e penso que trabalhar com o Terry me deu alguma capacidade de improviso, até na vida. Nunca sabemos o que vai acontecer, não há necessidade de tentar prevê-lo. E trabalhar com o Terry é um pouco isso".
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