Realizador, produtor e argumentista, Rodrigo Areias (“A Estrada de Palha”, “Ornamento e Crime”) soube construir, graças aos seus talentosos amigos, uma comunidade cinematográfica que sempre resistiu às adversidades da nossa (inexistente) indústria – a produtora Bando à Parte.

Agora, chega um pequeno filme como realizador que nos sussurra alguma esperança nestes tempos de incerteza: "Surdina" é uma das produções portuguesas que tomou o risco de abrir a temporada do cinema após quase três meses de salas fechadas e com isso, adquire um novo significado e uma nova força.

Colaborando com o escritor Valter Hugo Mãe, apresenta-nos uma superação à moda vimaranense do viúvo (pelo menos assim o pretende ser) Isaque (António Durães), que tenta lidar com a comunidade em que se insere e parece estar constantemente contra a sua forma de luta.

A SAPO Mag conversou com Rodrigo Areias sobre a importância deste seu filme nos tempos pós-COVID-19, as dificuldades que a sua produtora, assim como grande parte do cinema nacional, enfrentarão no futuro e a musicalidade como sua marca autoral.

Como surgiu a ideia para "Surina" e, acima de tudo, como nasceu esta colaboração com Valter Hugo Mãe?

Na verdade foi há alguns uns anos, quando li o seu romance “O Remorso de Baltazar Serapião” e que gostei muito. Contactei-o, mencionando uma possível colaboração. Ele respondeu-me com entusiasmo. Depois encontrámo-nos na sessão de estreia do “Corrente” [2008] no Curtas Vila do Conde, onde ganhou o prémio da competição nacional e o do público. Na altura, o Valter disse-me que gostou e a partir daí trabalhámos juntos na concepção deste trabalho.
Depois conjugou-se o facto das origens de ambos serem vimaranenses. A família dele, quer paterna, quer materna, é oriunda de Guimarães, assim como a minha. E como tal, concordamos em abordar este concelho como metáfora desses meios pequenos.

O filme recebeu uma nova interpretação com esta pós-pandemia. Há uma mensagem de esperança, progressão e, sobretudo, superação. Voltou a vê-lo depois disto? Encontrou esse novo e adquirido significado?

Quando a [distribuidora] NOS nos pediu para “reabrir” os cinemas com “Surdina”, achei, obviamente tendo em conta a dificuldade que é levar as pessoas às salas nesta altura, que fazia sentido, até pela própria mensagem de esperança que o filme traz. Principalmente para uma geração que, durante esta pandemia, de certa forma é a mais visada e a mais prejudicada. Por isso encontrei nisso um motivo de alento para lançar o filme neste período crucial. Anteriormente, no pré-pandemia, não necessariamente, mas agora, sim, olho para ele de outra maneira.

VEJA O TRAILER DE "SURDINA".


E quanto à banda sonora? Gostaria que me falasse do trabalho com Tó Trips e sobre esse constante invocar de bandas sonoras de outros seus filme. Neste caso, “Ornamento e Crime” [2015] pode ser ouvido e “visto” a certa altura. Como se conjuga este seu universo de sonoridades?

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Na verdade, somos todos amigos, uns dos outros. O Tó era para ter entrado na banda sonora da “A Estrada de Palha” [2012], mas acabou por não integrar, na altura não foi possível. Enquanto isso, o Tó e os Dead Combo trabalharam noutras produções do Bando à Parte, até com filmes de animação.
No “Ornamento e Crime”, o protagonista comprava um vinil do “Tebas” e neste filme, como até havia a questão dos pássaros e da gaiola, achei por bem que o disco do “Ornamento e Crime” tivesse um "cameo" musical. Sendo que, para o próximo … quer dizer, o próximo será um filme de época, por isso não será … mas futuramente será possível mencionar a banda sonora do “Surdina” noutra produção. De certa forma, é uma invocação constante.
A primeira parte desta pergunta, poderá será respondida com a primeira parte desta resposta. O Tó trabalhou connosco várias vezes, até mesmo como artista gráfico, porque ele normalmente faz quase todos os cartazes dos filmes do Bando à Parte. No fundo, falamos regularmente um com o outro, como disse, somos amigos. Mas antes da produção do filme, o Tó já fazia parte do processo, por exemplo, na própria candura, já haviam notas da composição a serem trabalhadas por ele. Só a partir do guião! Tó fez sempre parte da génese do projeto.

Uma curiosidade: uma parte do filme decorre dentro de uma, digamos, tasca, onde servem vinho em taças...

Sim, aquilo existe [risos]. E bebe-se mesmo vinho. Aliás, vinho verde tinto que é típico aqui da região, naquelas taças. Enquanto rodávamos o “Surdina”, a ASAE, obedecendo às suas leis “puritanas”, fecharam cerca de seis estabelecimentos como aqueles. Só não fecharam aquele que está no filme porque fica em frente à GNR [risos]. Por isso, acho que ninguém vai fechar aquilo [risos].

Mas todo este “Surdina” é de uma realidade reconhecida e ao mesmo tempo mística, pelo menos para quem vem da cidade.

Para mim, o filme é muito próximo da minha realidade. Mesmo aquelas vizinhas são pessoas que conheço. São representações de duas irmãs, uma já morreu, a outra até está viva. Bem viva, porque filmávamos a quatro casas ao lado da senhora e chegou a emprestar-nos os vasos para essa mesma cena. Aquilo foi um processo meio de espelho. Algumas pessoas são reais, não são atores, como por exemplo a velhota da mercearia, a senhora da padaria ou o homenzinho que está à porta da tasca. São pessoas reais a serem atores, obviamente, a fazerem de si mesmos, e achei por bem convidá-los a fazer parte do filme de forma descomprometida. Mas para mim, “Surdina” é toda uma realidade muito próxima.

No Festival Ymotion do ano passado [em Famalicão], falou no seu painel sobre o espírito de auto-ajuda e por vezes familiar de Bando à Parte, que vem atenuar as dificuldades constantes de produzir cinema em Portugal. Julgo que disse algo como “os financiamentos não subiram e os valores mantêm-se os mesmos, o custo de vida é que aumentou, o que significa menos dinheiro”. Como vê essa resistência nestes anunciados tempos escassos da pós-pandemia?

Neste momento, os custos aumentaram radicalmente. Não somente os de "vida", como também os de produção, que tiveram uma subida substancial. Por razões óbvias e de saúde pública é preciso ter uma série de outros cuidados, que são muitos complicados, face à nossa precária situação cinematográfica nacional.
Só para dar um exemplo do que estamos a viver hoje, visto que sou produtor. No “Não sou Nada”, o novo filme do Edgar Pêra, enquanto produtor tomei a decisão de alugar um hotel, ter toda a equipa alojada e fazermos uma quarentena cinematográfica. Uma segurança, no fundo, porque as regras impostas à atividade cinematográfica não são suficientes para garantir a segurança das pessoas. Não é só [uma responsabilidade] legalmente minha, em termos de produtor, mas moral.
Quanto a custos, um filme que, à partida, terá menos capacidades financeiras, passará a ter mais dificuldades. Só para ter uma ideia, serão mais de 100 mil euros de custos automáticos só na questão da COVID-19. Estamos a falar de mudanças na nossa vida diária e da produção normal. É lógico que a situação se torne mais difícil.

Em certa parte, a estreia de “Surdina” nas salas converteu-se numa espécie de consolação?

O filme estava previsto estrear a 16 de abril. Na verdade, este é um filme com um parco financeiro da Telefilmes, uma coisa feita com os TVCine. Ou seja, a NOS já estava envolvida no processo desde a sua génese. Por isso, o filme é feito com um sexto do orçamento de uma longa-metragem normal, mas já estava prevista a sua estreia em sala, isso estava determinado. Agora, neste momento a questão que se colocava era se teríamos coragem para o lançar agora, ou esperaríamos para ver como isto se desenrolaria.
Em relação à retoma, tem de ser algo relacionado com toda uma estratégia coletiva. Nós produzimos vários filmes, muitos deles esperando estreias em festivais, que se acumulam com mais outros filmes e a encavalitarem-se uns nos outros, seria uma situação muito complicada. Outra questão, que discuti com a NOS, foi a de que alguém deveria ter a coragem para arrancar. Porque se toda a gente adiar, se todos nós tivermos medo dos números que se vai fazer, então não se estreia filmes. E não estrear filmes levanta todo outro problema. É um ciclo vicioso, esse de estar à espera que algo aconteça. E como acredito que temos de ser nós a tomar uma decisão e não ficar somente à espera… pronto… é isso.

Digamos que “Surdina” vai ser um mártir?

Sim. Mas não será só o “Surdina”. Haverá muitos outros filmes que sairão prejudicados com a falta de números nesta altura. Mas de certa forma, alguém tem que contribuir para que esses números possam crescer e voltar a uma “dita” normalidade. E é aí que esta questão dos cine-concertos serem importantes para esta nova realidade [com a música de Tó Trips: a digressão arranca no Cinema Trindade no Porto, com sessões às 19h30 e às 22h00 de 9 de julho; passa por Centro Cultural Vila Flor em Guimarães dia 10; pelo NOS Amoreiras de Lisboa a 15; e em Aveiro a 16; outras salas pelo país serão anunciadas mais tarde].
É óbvio que a maior parte dos cine-concertos foram cancelados tendo em conta as regras de segurança e saúde pública que vêm sendo alteradas ao longo destas últimas semanas, mas efetivamente os cine-concertos trarão mais pessoas para verem o filme, mais promoção, e mais, espero eu, boca-a-boca. Nesse sentido, seremos sempre mártires, porque até os cine-concertos só podem ter 50% da lotação, e a última vez que embarcámos nestas iniciativas foi com “A Estrada de Palha”, em concertos de The Legendary Tigerman e a Rita Redshoes, que tiveram todas as sessões esgotadas. Agora, será com metade da lotação e nem metade dos cine-concertos agendados poderão arrancar!

Quanto a novos projetos? Esta pandemia obrigará a repensar rodagens e produções agendadas?
Neste momento, temos muitos filmes a serem preparados, grande parte deles ficaram parados na pré-produção. Quanto a rodagens, teremos este novo do Edgar Pêra que começaremos a rodar já em agosto. Depois, honestamente ainda não sei se as previsões de filmagens de outubro ou novembro se mantêm ou serão adiadas para o próximo ano. Neste momento, as decisões terão que ser tomadas sem grande antecedentes, se não as nossas previsões vão todas por água abaixo. Temos que ir fazendo “coisas”. Não dá para ver.