O ciclo "O 'Roman Porno' prossegue com mais filmes a serem projetados no Espaço Nimas, em Lisboa.

O "Roman Porno" nasceu da necessidade de enfrentar a queda abrupta da afluência de público japonês às salas na década de 1970: o estúdio Nikkatsu avançou para filmes de baixo orçamento e de duração que não ultrapassasse a hora e meia, para que fosse exibido em "sessões duplas".

Os filmes invocavam sexo “semiexplícito” numa altura em que o país estava dominado por uma forte censura e era explicitamente proibida a exibição de qualquer órgão genital, o que levou vários realizadores a exercitar o engenho criativo, ao mesmo tempo que faziam evidentes referências e presunções cinematográficas, e focavam diversos temas tabus ou de cariz político-social.

O impacto foi tal que, em 2016, para celebrar o 45º aniversário, cinco realizadores modernos foram desafiados a replicar os moldes aplicados nesses tempos áureos.

Desde o dia 18 de junho que o cinema tem iniciado esta viagem pelo movimento legitimado pelo estúdio Nikkatsu [1971-2016]. No total, são apresentadas cópias digitais restauradas de cinco filmes do “porno romântico” saídos daquele estúdio japonês na década de 1970 e outros tantos de 2016 que replicaram o formato.

A quarta parte do ciclo junta "Êxtase da Rosa Negra", de 1975 (dias 9 e 11 às 19h00 e 13 às 21h30) e " Gymnopédies Escaldantes", de 2016 (dia 10 e 12 às 19h00 e 14 às 21h30).

"Êxtase da Rosa Negra": o nascimento atribulado de uma estrela pornográfica

Não é alienado encontrar no movimento "Roman Porno" um júbilo masturbatório que requer olhar para dentro da sua essência no processo logístico e criativo.

“Êxtase da Rosa Negra” (“Kurobara shôten”, 1975) é uma sátira aos alinhamentos dos filmes porno-românticos. Dirigido por Tatsumi Kumashiro, esta auto-caricatura surge através de Juzo (Shin Kishida), realizador de filmes de teor lascivo algo charlatão, algo fracassado, que procura uma nova diva para as suas metragens depois de a sua atriz-fetiche encontrar-se de “esperanças”.

Durante a sua procura, que colide numa extravagante recolha de sons (o auge ocorre num jardim zoológico enquanto discute sexo com a sua “parceira do crime” sob um olhar atento de uma excursão escolar), encara uma gravação num consultório de dentista como um possível achado. Nela, é possível ouvir os gemidos de dor e contenção de uma mulher, que mais tarde saberemos pertencer a Ikuyo (Naomi Tani), que o nosso realizador perseguirá, assediará e persuadirá a participar no seu filme. O facto de esta mulher ser uma espécie de gueixa “congelada no tempo” não ajudará em nada na tarefa de conquista.

Construído em tons de comédia absurda, as contrastadas personagens são como hélices numa sátira que segue de cabeça para o retrato de um Japão dividido entre as suas entranhadas amarras tradicionais, sensualizadas, mas discretas, e a vanguarda libertina com um sedutor desejo de exposição. É um braço de ferro entre dois espectros de um só país, decorridos no auge do "boom" económico daquela época.

«Êxtase da Rosa Negra» é de um absurdismo calculado, arrojado, que adquire a sua força na igualmente caricatural montagem, quer visual e sonora, partituras que desfilam numa cadência de “desvirginação” ao som da marcha nupcial.

"Gymnopédies Escaldantes": o coito ao som de memórias passadas

Se a obra de Tatsumi Kumashiro assenta num dispositivo satírico para expor pornograficamente uma essência algo autorreferencial, já “Gymnopédies Escaldantes” (“Jimunopedi ni midareru”, 2016), de Isao Yukisada, vira-se para a trágica mágoa de um realizador marginalizado, Shinjin (Itsuji Itao), que vê o seu filme interrompido por falta de financiamento.

O percurso deste ser soturno é outro: um luto insaciável que se “alimenta” dos corpos femininos parecem ser a sua fonte de vivência e razão pela deambulação noturna entre espaços conhecidos e desconhecidos.

Mulheres são várias nesta jornada algo vampiresca, cada uma delas servindo de atalho para um outro corpo ambicionado, o da esposa de Shinjin, uma pianista, cuja melodia doce da "Gymnopédie No. 1", do compositor e pianista francês Erik Satie, é invocada sobre os atos lascivos como um ritual religioso.

Talvez “Gymnopédies Escaldantes” seja dos filmes mais sentidos e menos reflexivos do movimento que homenageia, e igualmente um dos mais desengonçados do leque de tributos ao “roman porno”.

O tom depressivo e autodestrutivo entra em gradual embate com um jeito trocista e de hilariante enxovalhamento da personagem de Itsuji Itao. É como se nos deparássemos com o culto de um artista frustrado, presunçoso e negacionista quanto aos seus verdadeiros propósitos existenciais. A pomposa aura intelectual que deseja vestir é, por exemplo, “desmascarada” durante um "Q&A" de um dos seus filmes, ou pelas peripécias com que se aventura para saciar as suas diferentes sedes.

Este é um filme cruel para com o seu protagonista, convertendo-o numa comédia em forma humana, acorrentado a uma cinza de nojo com adiadas urgências por cumprir.

A esperada (mas não desejada, nem mesmo pelo espectador) libertação acontecerá em forma de “punch line” de uma longuíssima piada mortal. É a última tirada, demonstrando que as memórias não se duplicam nem a elas se regressa imaculadamente. Isso, em conformidade com a essência de tributo de “Gymnipédie Escaldantes”, é uma mórbida autocrítica.