Retrato que cruza ficção e documentário, passado e presente, "Grand Tour" arranca com Gonçalo Waddington em modo noivo em fuga na Birmânia de 1918, ponto de partida de uma jornada insólita por vários países asiáticos. E quem persegue a sua personagem, Edward, é a mulher com o qual se comprometeu casar, Molly, figura que entra em cena aproximadamente a meio do novo filme de Miguel Gomes.
Crista Alfaiate, que já tinha colaborado com o realizador no tríptico "As Mil e Uma Noites" (2015) e "Os Diários de Otsoga" (2021), regressa ao seu universo depois de papéis recentes na televisão (nas séries "Regresso a Ítaca" e "Ao Largo") e no teatro, mantendo uma ligação constante aos palcos, onde iniciou o percurso artístico (trabalhando com companhias como O Bando, Mala Voadora ou Artistas Unidos).
Com uma passagem pelo grande ecrã que também inclui obras de João Nicolau ("A Espada e a Rosa", "Technoboss"), Pedro Pinho ("A Fábrica do Nada") ou João Botelho ("Uma Filme em Forma de Assim"), a atriz falou com o SAPO Mag na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, sobre a experiência no filme que conquistou o prémio de melhor realização no Festival de Cannes, em França, em maio, e foi escolhido pela Academia Portuguesa de Cinema para concorrer à nomeação de Melhor Filme Internacional nos Óscares:
SAPO Mag - "Grand Tour" não foi a tua primeira participação num filme de Miguel Gomes. O que tornou esta experiência especial face às anteriores, para além da receção muito positiva que já teve fora de portas, do prémio em Cannes à candidatura a nomeação aos Óscares?
Crista Alfaiate - Para mim, um das novidades foi ter filmado pela primeira vez a preto e branco. A época também foi uma novidade. E no início do processo, havia um guião mais extenso, com mais cenas de aventuras incríveis, mas teve de ser cortado. Essa foi uma parte muito importante para o processo, porque tive acesso a esse imaginário e a essas cenas, e como se desenvolvia o percurso da Molly aí, portanto, isso foi tudo especial. Quando eles começaram a fazer o filme, quando foram para a Ásia filmar com uma equipa pequenina, eu já sabia desta aventura, estava a seguir de perto, mas não sabia o que é que estava no filme ainda. E depois acompanhei com muita curiosidade e com muito ânimo todo esse processo, que era muito entusiasmante, porque o guião não estava escrito na altura em que eles foram já viajar e filmar. Não é que não se trabalhe para os prémios, trabalha-se para o filme. Agora, quando eles vêm, é incrível, é reconhecimento. Pelo facto de ter estado na competição em Cannes e ter ganho o prémio, o filme será visto em muito mais sítios, em muito mais salas, em muito mais países, e isso é incrível.
Há muito sobre a Molly que nós não vemos. No filme, ela só surge a meio, embora seja mencionada antes. Como é que olhaste para ela? Imaginaste uma história de vida dela, falaste sobre isso com o Miguel? Porque ela já tem um percurso antes de chegar ali, nós só vimos aquela parte muito específica da procura dela.
Confesso que não recuei muito, não fiz uma coisa de método e de interiorização da pessoa, porque conhecendo o Miguel e trabalhando com o Miguel, nós vamos ter sempre de ajustar o tom. E o que eu precisava de perceber era a ideia dele sobre o filme e sobre a personagem, sobre o seu desenvolvimento, ou o que é que ela representa aqui. E não é uma vida passada que pode preencher mais esta esta personagem. Começámos pelo riso da Molly. Ela ri desesperadamente, ri alarvemente, ri de várias maneiras. Tens o guião cheio disso. Então, tecnicamente, eu tinha de perceber qual era este riso e como é que era. E depois de chegarmos a este riso, tenho muitas pistas a partir disso. Como é que eu consigo justificar como é que vem este riso e de onde é que vem este riso? Tivemos mês e meio de ensaios, portanto fui construindo com o que íamos tendo cada dia com cada ensaio, mais do que com uma pesquisa de vida ou inventar um passado para a Molly.
E o que dirias que uma personagem como ela te trouxe? Já interpretaste várias mulheres no grande ecrã, e sobretudo no teatro. Para além do riso e de outras características visíveis, não sabemos muito dela, mas é uma mulher que naquele tempo se lança literalmente à estrada para ir à procura de alguma coisa, não fica à espera daquilo que queria encontrar. Como é que te colocaste no papel de uma mulher daquele tempo que tinha essa atitude?
Ela é muito obstinada e corajosa, mas esse objetivo é quase cego. Tentei perseguir a sua teimosia. E depois, abordar o encantamento das coisas que ela vai encontrando pelo caminho. No fundo, foi estar muito presente em cada momento. Uma das coisas que disse ao Miguel foi "Parece que não encontro unidade entre as várias cenas, não consigo fazer um arco completo, como é que ela salta daqui para aqui." Como tu dizes, não sabemos muito sobre ela. "E o Miguel respondeu, e bem, que isso me deixava muito mais livre. Que se não encontrava, era porque se calhar não havia, ainda". E se calhar não há esta unidade, porque o filme é mais do que esta história de amor, é mais do que as personagens. As personagens contribuem, mas nem sei se no mesmo peso e medida que a paisagem, que o percurso, que o anacronismo dos tempos. Portanto, o mais importante, em qualquer processo com o Miguel, é manter as coisas de forma a poder ajustá-las em qualquer altura. Porque mesmo a filmar, a cena está preparada e ensaiada de uma forma, e acontece uma coisa, ele quer fazer, acontece uma coisa naquele take, ele quer aproveitar para fazer outra coisa. E muda, mudou. E vamos seguir por ali. O que é importante é mais estar aberto e estar presente. Acho que o Miguel filma muito assim, é o que está a acontecer agora, e isso é maravilhoso, é muito desafiante e divertido, é prazeroso estar presente, não é uma coisa estanque. Está muito trabalhada para estar aberta. Isso é giro, é muito giro.
Também já tinha sido assim nos filmes anteriores com o Miguel?
Todos os processos têm dispositivo diferente. "As Mil e uma Noites" tinha guião em construção. Houve dias em que eu recebi telefonema para ir filmar, mas que ainda não se sabia bem o quê. Se te lembras, partia das notícias que iam saindo no jornal, que uma equipa de jornalistas ia perseguindo e uma equipa de produção deslocava-se ao local para perceber se era viável ou não fazer aquilo. E depois, perseguia-se aquela história ou não, os guionistas escreviam e íamos filmar. A minha personagem era a Xerazade. Na primeira semana, acho, já não me consigo lembrar bem, mas fui chamada para fazer uma punk. "Ah, mas também pode caber Xerazade, a Xerazade é punk, vamos". Mas pronto, nas "As Mil e uma Noites" havia um guião em construção. No "Diários de Otsoga", não havia guião. Acordávamos, saímos da cama e não sabíamos o que é que íamos filmar.
Entretanto, começaste no cinema quase há 20 anos, no "4 Copas" [2008], de Manuel Mozos...
Nem tinha feito essas contas.
Como é que olhas para o teu percurso, onde foste cruzando cinema e teatro? Tentaste priorizar uma área em especial ou conjugar as duas? Como é que foste gerindo prioridades?
Por mim, eu faria sempre as duas ao mesmo tempo. Mas, sem dúvida, o teatro está sempre presente, o teatro é, posso dizer, o que me sustenta. Faço muito mais teatro do que cinema, porque o cinema também tem outros tempos e o teatro, infelizmente, agora está com tempos cada vez mais curtos. Não posso dizer que há uma preferência, não consigo, são os dois ao mesmo tempo de preferência, a linguagem é muito diferente. Consigo descobrir muitas diferenças ou coisas melhores de uma, coisas melhores no outro, e por mim conciliaria. E acho que foi isso que foi acontecendo, também fui conciliando com timings diferentes no cinema. Mas estive sempre a fazer teatro, foi por onde comecei. É a génese de tudo, foi onde aprendi, me descobri e fiz escola. O cinema fui aprendendo, fazendo.
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