O realizador Kléber Mendonça Filho alerta para uma “completa ausência de compreensão do passado” que está a afetar o Brasil.
Em entrevista à agência Lusa em Vila do Conde, no âmbito do festival Curtas, o realizador de “Bacurau” explicou que o seu mais recente trabalho, no qual partilha a realização com Juliano Dornelles, “é um filme futurista, ou seja, um filme que estaria fazendo uma projeção do que as coisas serão, mas na verdade muitos dos conflitos do filme são problemas crónicos históricos do Brasil e do mundo”.
“Para mim, é um filme de História, no sentido em que é um filme sobre o passado. E o passado está muito presente no filme e a relação da comunidade com a História. E a relação de um outro grupo de pessoas com a História, no sentido de não entender a História”, explicou Mendonça Filho.
Questionado sobre que diferença estabelece entre História e o passado, o realizador responde: “A História me parece que é a compreensão do passado. O passado são os factos isolados ou no seu estado puro, mas é difícil você olhar para o passado como uma máquina. O passado sempre vem acompanhado de uma interpretação ou de um sentimento, pode ser de nostalgia, pode ser a partir de um trauma, pode ser uma compreensão política ou social como os historiadores ou sociólogos fazem, mas o passado para mim é o facto absoluto isolado”.
Assim, fazendo ele próprio o exercício de olhar para trás, Kléber Mendonça Filho vê, há 10 anos, um “momento em que existia dinheiro para a cultura no Brasil e existia uma vontade política de apoiar e ajudar a cultura no Brasil”.
“Eu quando me formei, em 1992, não tinha absolutamente nada no Recife para quem gostaria de fazer cinema. Dez anos atrás, um garoto ou uma garota de 21 anos podia escrever um projeto de curta-metragem, submeter e ganhar 60 mil reais para desenvolver o seu filme. Eu falava para os meus amigos ‘atenção, a gente está vivendo uma época de ouro’”, lembrou o cineasta, que disse sublinhar na altura que tais circunstâncias não eram normais.
Esse apoio, num momento em que a presidência do Brasil era ocupada por Lula da Silva, explica “a construção de um novo cinema brasileiro e que hoje explica dois filmes em Cannes com dois prémios – um [‘A vida invisível de Eurídice Gusmão’, de Karin Aïnouz] na Certain Regard e outro [‘Bacurau’] na competição – um filme estreando em Sundance, dois filmes estreando em Berlim, já vai ter filme agora em Veneza, ou seja, é parte de uma construção”.
Esta constatação leva Kléber Mendonça Filho a registar como facto - e não com nostalgia - que o momento vivido há 10 anos era especial.
Por outro lado, o que está a acontecer hoje no maior país da América do Sul é “a completa ausência de compreensão do passado”.
Referindo-se à mais recente polémica causada por declarações do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que disse que “o trabalho dignifica o homem e a mulher, não interessa a idade”, Kléber Mendonça Filho afirmou que “muita gente não entende que valorizar o trabalho infantil é uma repetição do que era um Brasil com trabalho infantil oficializado 50, 60, 70 anos atrás, e isso é algo que absolutamente não deveria estar acontecendo”.
“Não acho que ninguém está querendo reeditar os ‘grandes e bons tempos’ de crianças de 7 anos de idade trabalhando em fábricas, acho que é simplesmente alguém que não tem a menor noção do passado, falando qualquer coisa, falando ‘n’importe quoi’, como falam os franceses. Falando merda”, declarou o realizador.
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