Uma história sobre um pai e o seu filho que se perdem um do outro no meio das lutas entre exploradores e indígenas, nos primórdios da América dos anos 1820. Qualquer sinopse não faz jus a “The Revenant: O Renascido”, o filme ambicioso, poético e contemplativo de Alejandro G. Iñarritu, que mostrou ao mundo o ator que Leonardo DiCaprio sabe ser.
As fagulhas alaranjadas de uma fogueira sobem ao encontro das copas das árvores escuras, finas e altas. Por trás, um céu que escureceu não há muito tempo. Hawk (Forrest Goodluck) está deitado de costas para a terra, as lágrimas escorrem-lhe pelo rosto. Os sons da fogueira a crepitar pintam aquela imagem. É tudo profundamente bonito.
Alejandro G. Iñarritu , ao vencer o Óscar pela realização de “O Renascido”, agradeceu aos atores a confiança que nele depositaram. Na verdade, só com grande confiança foi possível fazer este filme.
Leonardo DiCaprio é Hug Glass, personagem inspirada no caçador de peles dos anos 1820 que se diz ter sobrevivo ao ataque de um urso fêmea, a proteger as crias. Glass terá andado mais de 100 quilómetros desde o momento em que foi abandonado por membros da sua expedição que o julgavam quase morto, até reencontrar o grupo.
Alejandro G. Iñarritu e Mark L. Smith ficcionaram o resto do argumento, criando uma relação familiar como mote do esforço hercúleo de Glass para sobreviver. É que Fitzgerald (Tom Hardy, quase irreconhecível no papel) matou-lhe o filho, Hawk, quando Glass estava ferido e não pôde defendê-lo. O filho era a única coisa que tinha na vida, diz.
Percebe-se que Iñarritu tenha colocado uma relação familiar como catalisador do desejo de vingança de Glass – que procura Fitzgerald para saldar a dívida. É que a simples sede de vingança não parece ser digna desta personagem. Mas uma espécie de justiça dívida (que chega no final) já lhe assenta na pele.
A odisseia de “The Revenant: O Renascido”
Alejandro G. Iñarritu arrancou com uma equipa, atores e figurantes sem fim para Alberta, no Canadá, para aí filmar “The Revenant: O Renascido”. Quis fazê-lo na sequência cronológica do filme, para que os atores se encontrassem com a viagem espiritual que as suas personagens atravessam na história.
Iñarritu e o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki decidiram também filmar apenas com luz natural. Impondo um ritmo ainda mais lento às gravações, a equipa demoraria várias horas a chegar aos locais das filmagens e teria pouco tempo útil para gravar com a luz ideal. Um factor de dificuldade acrescida foi o clima, já que as temperaturas negativas intensas provocaram problemas até nas câmaras. E porque a equipa estava no meio da natureza, entregue apenas à sorte de encontrar boas condições, estava sujeita a qualquer alteração climática. A subida da temperatura derreteu a neve e forçou uma paragem nas gravações e a deslocalização da equipa para a Antártica, numa verdadeira odisseia de Iñarritu.
A dedicação de Leonardo DiCaprio ao projeto é inegável e é isso que se vê no resultado final, em que o ator se agiganta na sua missão de dar vida a Glass. DiCaprio é ativista pela luta contra a exploração do planeta e dos recursos naturais pelo homem e percebe-se, por isso, que a história lhe seja particularmente próxima. É vegetariano mas, ainda assim, quando o realizador lhe apresentou um fígado de bisonte e uma versão gelatinosa parecida, DiCaprio escolheu trincar a primeira opção. Da mesma forma, comeu o peixe cru que a sua personagem consegue apanhar com as próprias mãos.
Enquanto não podiam filmar, os atores ensaiavam. Por horas a fio, praticaram-se cenas como a batalha inicial em que os indígenas surpreendem o corpo de expedição. Esta cena é sangrenta e épica (faz lembrar o início de “O Resgate do Soldado Ryan”), tem quase 10 minutos e está cheia pormenores intermináveis. O melhor? Tem a marca de Iñarritu: é quase uma sequência. E a câmara leva-nos diretamente para dentro do campo de batalha.
Quando os atores rastejam, a câmara segue-lhes o passo. Acompanhamos os golpes que Glass desfere e vemos gotas de sangue salpicarem-lhe o rosto. Mergulhamos na água quando um índio tenta afogar Bridger (Will Poulter). Ao longo do filme, esta câmara é os nossos olhos. Cai sobre a terra, tem poeira e gotas de água do rio Missouri. Quando o urso avança sobre Glass e o atira contra as rochas, a câmara repete o movimento. Quando o cavalo em que o caçador foge dos índios corre a uma velocidade estonteante, a câmara segue-lhe a passada e nem nos apercebemos de que estava tão perto o precipício e que a queda era inevitável.
Esta câmara de Inãrritu é rápida e dinâmica, mas também se deixa pairar perante a imensidão da natureza. É nesse equilíbrio entre a rapidez e a contemplação que aquela natureza acaba por assumir-se como uma personagem da história, capaz de ser mais vil do que os homens, mas sendo ao mesmo tempo uma mãe onde os filhos podem descansar: DiCaprio rasga com uma faca o corpo do cavalo morto, retira as entranhas, despe-se e resguarda-se no interior da carcaça para sobreviver às temperaturas agrestes da noite.
O verde é muito rico, a luz é hipnotizante, as montanhas são infinitamente brancas. Essa é uma beleza que a fotografia conseguiu captar na perfeição e que a qualidade de imagem soube respeitar fielmente. Mas só existe porque o realizador insistiu em demorar-se ali, para que os atores pudessem conviver com a natureza, sabendo da sua superioridade e tentando humildemente ocupar aqueles espaços. Para perceberem – e nos mostrarem – que ainda há sítios onde o homem não manda. Essas pausas estão no filme, precisamente quando o realizador introduz planos das árvores, das montanhas ou dos rios. E são de uma beleza arrebatadora. É como se Iñarritu os tivesse captado nos intervalos das filmagens. Como aqueles acasos bonitos, a que se chama poesia. Só a subtileza de Ryuichi Sakamoto podia ser banda sonora desta poesia...
Glass também a encontra na sua viagem. Perante as ruínas de uma igreja, de onde ainda pende um sino cerimonial, vê a imagem do filho. Depois de ter sido abandonado por um índio, que o ajuda a curar os ferimentos, Glass sonha com a mulher, morta numa daquelas batalhas.
É poesia. Alejandro G. Iñarritu chama-lhe espiritualidade, no documentário que acompanhou as filmagens e que fala precisamente sobre a exploração da natureza sem olhar a custos.
Ao aceitar o Óscar por “The Revenant: O Renascido”, Iñarritu agradeceu aos atores, com toda a justiça, porque sem eles não teria sido possível dar vida à sua visão. Com o seu inglês de sotaque mexicano, Iñarritu dedicou o galardão ao pai, lembrando uma das frases que Glass diz a Hawk: “Eles não ouvem a tua voz, só veem a cor da tua pele”.
Há quem queira resumir “The Revenant: O Renascido” a uma versão embelezada de um western. Mas o filme é mais do que uma guerrilha sangrenta entre homens barbudos; é uma história sobre um pai e o seu filho, que, sem terem nada, perderam tudo quando se perderam um ao outro.
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