“Foi como se um pássaro lindo tivesse batido as asas a entrar na nossa gaiola monótona e as paredes se tivessem dissolvido. E, por breves instantes, todos os homens em Shawshank se sentiram livres.”
“O Brooks esteve aqui”, diz a inscrição esculpida na madeira do quarto. As palavras são rápidas mas dizem muito sobre esta história. “Os Condenados de Shawshank” (1994) é um filme sobre como o medo pode vencer a esperança. Ou sobre como a esperança está acima de tudo. Ou mesmo sobre os limites da humanidade quando é privada de um dos seus pilares, a liberdade. Frank Darabont realiza e Tim Robbins e Morgan Freeman protagonizam este que muitos dizem ser o melhor filme de sempre.
Quando, há pouco tempo, Martin Scorsese incendiou as caixas de comentários online por dizer que os filmes da Marvel não eram cinema, a sua afirmação fez sentido. Percebo-lhe a posição, ao achar que estas sagas de super-heróis não são cinema. São filmes, disse Scorsese, e é uma pena que não existam mais filmes narrativos, nos nossos tempos. As razões são várias – desde logo, uma procura do espectador pela experiência aventureira, mais do que pelo exercício reflexivo a que convidam algumas histórias. Mas essas razões pouco interessam aqui. A verdade é que muitos se insurgiram com o comentário de Scorsese, sem olhar ao verdadeiro sentido da sua afirmação. E ela está absolutamente certa.
Os dez filmes com melhor pontuação atual no IMDb (vale o que vale) são relevantes pela história que contam. Estão lá os dois primeiros volumes de “O Padrinho” (1972 e 1974), sobre o fim de um ciclo de poder e a ascensão de um homem vil; está lá “A Lista de Schindler” (1993), sobre crimes atrozes da humanidade; está lá “O Cavaleiro das Trevas” (2008), que embora tenha importância pelos efeitos especiais de Christopher Nolan pesa, aqui, pelas interpretações de Christian Bale e Heath Ledger. Já lá está também o “Joker” de Todd Phillips (2019), com uma prestação já muito aplaudida de Joaquin Phoenix a reinventar o vilão. Os primeiros lugares da lista do IMDb são peças de cinema que nos dizem algo sobre nós mesmos, sobre a condição humana – as atrocidades de que somos capazes e aquelas por que passamos; a luta (interna ou fantasiosa, mas verdadeira) do bem contra o mal; os laços de solidariedade e fraternidade.
É este o cinema de que Scorsese falava e é este cinema que justifica que “Os Condenados de Shawshank”, sem grande perícia técnica, seja uma daquelas histórias que nunca passamos à frente, no zapping no sofá lá de casa.
Andy Dufresne (Tim Robbins) é um banqueiro acusado e condenado pelo homicídio da mulher e do seu amante. Andy, que garante ser inocente, é enviado para a prisão de Shawshank, onde deverá cumprir as suas duas sentenças de prisão perpétua. A perspetiva que vemos diante desta personagem parece ser tão pesada como os muros intransponíveis da prisão, onde conhece Red (Morgan Freeman). A amizade é imediata.
Red, que é o nosso narrador nesta história (original de Stephen King), relata algumas das dificuldades do protagonista, como as agressões constantes por parte de outros grupos. Andy vai resistindo sem levantar ondas, até que, um dia, destacado com os colegas para reparar o telhado de uma zona da prisão, encontra uma oportunidade única. Sugere ao capitão da guarda uma manobra fiscal para evitar impostos, para espanto de guardas e prisioneiros e grande ousadia da sua parte. Em troca, pede três garrafas de cerveja para cada um dos homens que ali estão a trabalhar. Como narra Red, aqueles homens que, às 10 da manhã, bebiam cerveja gelada no telhado, com o sol nos ombros, podiam ser quaisquer outros homens, a reparar os telhados das suas casas, muito longe dali.
Os conselhos de Andy ganham fama e ele acaba a trabalhar as contas da prisão, escamoteando os recebimentos indevidos do diretor, Norton (Bob Gunton). Andy toma como missão recolocar de pé a biblioteca da prisão, que Brooks (James Whitmore) tratara como o seu projeto pessoal durante as cinco décadas em que cumpriu pena. Um dia, Andy recebe os fundos que tanto pedira, além de caixas com livros e discos doados. No gabinete do diretor, liga os microfones de toda a prisão para que se possa ouvir “Le Nozze di Figaro” a tocar. A composição de Mozart estende-se como um raio de sol pelas diferentes áreas de Shawshank até ao pátio, onde dezenas de homens ouvem a música estarrecidos. As palavras de Red, na voz de Morgan Freeman, dizem que, por instantes, não havia um único homem na prisão que não se sentisse livre.
A liberdade e uma harmónica
Andy, que regressa do castigo de sorriso na cara, explica ao grupo que a música é uma forma de alimentar a esperança interior e algo que prisão alguma lhes pode roubar. O conceito é estranho para os prisioneiros que estão institucionalizados, como diz Red. Entraram no sistema – onde até uma ida à casa de banho requer permissão – e tornaram-se parte dele. A humanização dos prisioneiros foi recebida com estranheza e há crítica da época que rejeitou o filme por causa deste traço da história. As vendas de bilheteira também não foram um sucesso. Como se a sociedade não se permitisse perdoar as falhas de um grupo, cuja representação no cinema mereceu mais vezes a caricatura da violência do que a esperança da redenção.
O episódio de Mozart explica também a personagem de Brooks, que sai em liberdade condicional depois de uma longa pena, já velho, com dores nos ossos das mãos e um medo imenso de deixar para trás a única coisa que conhece como casa: Shawshank. O lugar da música e das outras coisas que faziam daqueles homens as pessoas que eram fora da prisão foi ocupado com medo. Brooks, amedrontado, inadaptado, institucionalizado, não consegue viver fora dos muros da prisão e pendura uma corda na viga de madeira do quarto que lhe deram, juntamente com a liberdade condicional.
Red também se esqueceu do que era. Esqueceu-se de que tocava harmónica e eis que Andy lhe oferece uma. Andy restitui a Red a capacidade de sentir esperança, uma esperança alicerçada na amizade que volta a unir os dois prisioneiros, um dia, junto a um oceano muito azul.
A história não é coerente na libertação de Red. Vemo-lo, por duas vezes, dizer ao painel que vai decidir o seu destino que é um homem reabilitado, primeiro, com 20 anos da sentença cumpridos e, depois, quando já passaram 30. É só ao fim de 40 anos da pena que Red muda o discurso. Andy ensinou-lhe a sentir esperança, mas Red perdeu a esperança de ver aprovada a sua liberdade condicional, mas é nesse momento que a consegue.
A perda de esperança contraria o que Andy tentou incutir nos prisioneiros, mas também é libertadora. É que Andy é traído pelo sistema de corrupção da prisão. Para que não perdesse o seu contabilista e o esquema de ganhos em usufruto próprio, o diretor da prisão manda executar a sangue frio o prisioneiro que pode ilibar Andy dos dois homicídios pelos quais fora condenado, contando que ouvira a confissão de outro preso por aqueles crimes. As palavras que o diretor e o prisioneiro trocam são outro dos momentos mais fortes do filme.
Red liberta-se desse sistema corrupto. Perde a esperança de que lhe concedam a liberdade e perde também o medo. É nesse momento que sai para o mundo real, com a mesma sensação de desamparo de Brooks, mas dedicado a cumprir uma promessa feita a Andy.
A história de “Os Condenados de Shawshank” envolver medo, liberdade e esperança, num novelo intrincado e mascarado pela passagem do tempo. Não temos noção de que os anos passam, a não ser quando as personagens dão indicação disso. Perdemo-nos dentro das rotinas dos prisioneiros, assim como eles se perdem na sucessão de dias sem sentido, naquela vigilância panótica que galga os muros altos de Shawshank.
A redenção
Este drama de Frank Darabont deixa no ar uma pergunta. A redenção prometida no título cabe a quem?
É a redenção dos prisioneiros que cometeram crimes (que não chegamos a conhecer) e pagaram a sua dívida à sociedade?
É a redenção de Andy, ele que, sendo inocente, diz-se culpado de ter afastado a sua mulher, motivo da infidelidade dela?
É a redenção de um sistema que esmaga as coisas boas da vida – a música – em prol do controlo e disciplina absolutos?
É a redenção de uma justiça injusta, que não hesita em encarcerar inocentes, sem provas, como tantas vezes a ficção já retratou – e recentemente em “Aos Olhos da Justiça”, série sobre o caso chocante de cinco crianças acusadas de uma violação que não cometeram?
É a redenção do diretor, que tira a própria vida para não sofrer a vergonha e o castigo pelos seus crimes, depois de Andy o denunciar?
É a redenção de uma sociedade que tem de devolver aos presos do sistema aquele que lhes tirou?
Scorsese é pelo cinema narrativo, o das grandes histórias. “Os Condenados de Shawshank” é isso mesmo. Tem as amarras mentais e psicológicas, como “Voando Sobre um Ninho de Cucos” (1975), e a busca da beleza no meio da adversidade, como “A Vida é Bela” (1997). Como mérito próprio, tem a capacidade de nos fazer pensar sobre a marca que deixamos no mundo.
“O Brooks esteve aqui. E o Red também.”
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