Para ele, a morte é uma fatídica inevitabilidade que nos deve encher de angústia. Para os millennials, a angústia é conhecer a obra de Woody Allen a começar pelo fim. “Manhattan” (1979) foi, com “Annie Hall” (1977), um dos primeiros grandes filmes do realizador, mas a constante reinvenção da mesma história, ao longo de anos, retirou-lhe a surpresa. O brilho está lá, assim como as suas marcas clássicas. Mas já vimos este filme demasiadas vezes.

A lista de 30 filmes para ver antes dos 30 só incluía, à partida, um título de Woody Allen. Agora que foi alargada, para incluir as sugestões de críticos de cinema e publicações de renome, o realizador figura com mais duas obras. Esta semana, o filme escolhido deveria ser “Annie Hall”. Mas aquele que, como dizem, foi o primeiro grande título de Woody Allen não surpreendeu. E, porque todos gostamos de Woody Allen, no seu jeito neurótico e filosófico de contar a vida, parti de imediato para “Manhattan”, sem tempo para digerir a desilusão. E então, com este filme a preto e branco, fez-se luz na origem do desencanto: os primeiros filmes de Allen foram o ponto de partida de uma longa corrida que ele começou a caminhar (da mesma maneira desengonçada com que passeia os ombros magros numa t-shirt coçada, pelas ruas de Nova Iorque).

É que o Woody Allen que conhecemos (os da minha geração) é o de “Match Point” (2005) e “Vicky Cristina Barcelona” (2008). Se é certo que o universo é o mesmo, as personagens e histórias que o habitam amadureceram e os cenários lançaram-se numa digressão mundial por outras geografias, depois de esgotar Nova Iorque como pano de fundo.

Manhattan
Manhattan

“Manhattan” apresenta-nos Isaac Davis (Woody Allen, quem mais?), humorista nova-iorquino, de origem judaica, que mantém uma relação com Tracy (Mariel Hemingway, neta desse Hemingway, sim...). Ele tem 42 anos, ela tem 17. Yale (Michael Murphy) é o amigo e confidente do protagonista, a quem confessa ter um caso com Mary (Diane Keaton), que se tornará objeto da atenção de Isaac. Agora, o enredo que daria todo um outro filme: Isaac fala repetidamente da sua ex-mulher, Jill (Meryl Streep), uma relação que falhou porque ela o trocou por outra mulher e agora está a escrever um livro sobre a relação do casal. A perspetiva de ter a sua vida privada e íntima exposta ao público é fonte de ansiedade para Isaac.

Este cenário é apenas um dos remates cómicos do guião de Woody Allen e, como em tantas outras cenas escritas por ele naqueles primeiros anos, parece ter inspirado outros quadros de humor (a história de Ross, sobretudo no início de "Friends", é este mesmo trauma).

O que faz de “Manhattan” um grande filme cómico é a descontração com que estes momentos nos apanham de surpresa. Não falamos, claro, das referências à virilidade de Isaac – até porque, como também faz em “Annie Hall”, Woody Allen apaga sempre a luz dos momentos em que se pré-anuncia um sedutor nato. Falamos, por exemplo, do encontro imprevisto de Mary com o ex-marido. Ela descrevera Jeremiah como um homem arrebatador. Quando se encontram no ecrã, Jeremiah é interpretado por Wallace Shawn, figura que não casa com a descrição, como sugere o realizador. O efeito cómico está lá, mas será suficiente para aguentar o filme?

Rimo-nos ainda das falas de Isaac sobre a sua origem judaica. Mas este tema repete-se e é quase um trauma do protagonista. (Talvez as referências sexuais também o sejam e nem vale a pena lembrar paralelos entre a relação fictícia com Tracy e a realidade...)

A inevitabilidade da morte como algo pesaroso e doloroso também está em “Manhattan”. “Acho que não devias tomar Valium. Provoca cancro”, diz ele.
O centro da história é, claro, o encanto de Isaac por Mary, que se torna em relacionamento para depressa deixar de o ser. A sinopse é, de facto, muito curta – basta dizer que é mais uma relação disfuncional narrada por Woody Allen, em que tanto ele como ela se apercebem de que querem coisas diferentes.

O que é que distingue “Manhattan” de tudo o que lhe sucedeu? “Manhattan” tem a cidade como pano de fundo, sim. Aqui, vemo-la a preto e branco, com a luz a empurrar a sombra para os arranha-céus e a conquistar espaço sobre a ponte, na famosa cena no banco diante do rio. A fotografia é muito cuidada e foi obra de Gordon Willis. Vale a pena lembrar a cena em que Mary e Isaac se refugiam da chuva no planetário e o espaço presta-se a uma conversa mais próxima entre as duas personagens que acabam de se conhecer.

É verdade que gostaríamos de ver mais de Meryl Streep, com o seu longo cabelo loiro, mas contentamo-nos com a genuinidade de Mariel Hemingway e a sua Tracy, a adolescente deslumbrante, inebriada com os encantos de Isaac, que se revela mais madura do que todos os adultos da história.

Manhattan (1979)
Manhattan (1979)

E, por fim, a música. “Manhattan” é uma cidade pintada ao som de Gershwin, logo com “Rhapsody in Blue”. O filme abre justamente com a declaração de amor de Woody Allen, com sotaque local: “Ele adorava a cidade de Nova Iorque. Idolatrava-a para lá dos limites.” Não podia haver melhor cenário para o passeio de Isaac, Mary e o seu daschund, a meio da noite.

O amor à cidade, as relações disfuncionais e a comicidade súbita de um ser profundamente mergulhado na sua neurose de estimação impedem-nos de apreciar “Manhattan” em toda a sua glória, neste ano de 2019. Uma lástima, uma angústia não ter conhecido a filmografia de Woody Allen na ordem certa. Ou talvez o problema não seja cronológico. Em “Manhattan”, Mary confessa que, apesar do fascínio antigo por Kierkegaard, o leitor cresce e deixa essa admiração para trás. “Eu adorava-o quando estava em Radcliffe, mas, depois, ultrapassa-se isso.”

Não deixa de ser irónico ter chegado ao início de Woody Allen com um amargo de boca, de quem percebe que as comédias simples e impregnadas de filosofia rápida satisfazem mas não chegam. Mais ainda, porque a idade está a acompanhar o avanço numa lista onde estão alguns dos melhores filmes já feitos e Woody Allen está a perder terreno para outros realizadores e argumentistas portentosos, mesmo no campo das histórias simples.

A filosofia de Woody Allen, pelo menos, continua certeira e, a julgar pelo trailer do seu novo filme, está mais afiada do que em “Manhattan”. Como diz em “Annie Hall”, “a vida é cheia de miséria, solidão e sofrimento. E acaba demasiado depressa”.