A voz de Nancy Sinatra sussurra “bang bang”... Surge o rosto ensanguentado de Uma Thurman, a imagem é preto e branco. “My baby shot me down”…
Umas botas de cowboy escuras percorrem o soalho de madeira. Uma mão masculina limpa o sangue da cara da mulher, com um lenço. Bordado no lenço, um nome: Bill.
Zoom out no ecrã e percebemos que a mulher está vestida de noiva, traje que lhe dá história e contexto. O nome verdadeiro só será conhecido daqui por algum tempo. Chamam-lhe A Noiva. E A Noiva está grávida.
A ideia para “Kill Bill” surgiu a Quentin Tarantino enquanto estava a filmar “Pulp Fiction” (1994). Mas só em 2003 é que saiu da gaveta o projeto de fazer este filme de vingança que estica a realidade, com humor e ação. A protagonista seria uma mulher forte, uma assassina a perseguir aqueles que lhe tinham feito mal.
“Kill Bill - A Vingança Vol. 1” apresenta-nos a história daquela assassina treinada – a mulher mais perigosa do mundo – que tenta deixar a Deadly Viper Assassination Squad, o grupo de assassinos a soldo, quando descobre que está grávida do líder, Bill, apenas para ser encontrada numa igreja, prestes a casar com um homem simples de El Paso.
Torturada pelo gangue, Bill chega a atingi-la com uma bala na cabeça. Quatro anos passados em coma, A Noiva acorda e procura vingar-se de todos quantos estiveram presentes no ataque, aqueles que tinham sido os membros do seu gangue.
A primeira vítima é Vernita Green (Vivica A. Fox), com o nome de código Copperhead. A Noiva encontra-a na sua pacata casa de subúrbios. O confronto lança por toda a casa estilhaços de quinquilharia kitsch, até que a luta é interrompida pela chegada da filha de Vernita Green. Terá pouco mais de quatro anos e assiste à morte da mãe, rodeada de cereais coloridos espalhados pelo chão da cozinha. A personagem de Thurman despede-se da criança a dizer-lhe que a procure, daí por muitos anos, quando quiser vingar-se. “Kill Bill: Vol. 3”? Tarantino já disse ser possível.
Segue-se O-Ren Ishii (Lucy Liu), a Cottonmouth, líder dos clãs da máfia japonesa e carrasco cruel de quem contestar a sua legitimidade porque, afinal, tem ascendência nipónica mas também americana e chinesa. A perseguição e morte de O-Ren dá conta de boa parte do Volume 1. Tarantino dedica largos minutos a contar a história de Ishii em criança, que vê os pais serem mortos às mãos da máfia e procura vingar-se, tornando-se ela mesma uma prodigiosa arma de guerra. O passado de O-Ren é contado em anime e chega mesmo a haver um ritmo de banda desenhada em todo o Vol. 1, na forma como a história vai acontecendo, nos sons exagerados durante as lutas, nos golpes violentos e no sangue que jorra (de forma pouco realista) de corpos decepados.
A Quentin Tarantino, todos reconhecem a arte de citar os seus filmes preferidos. Em “Kill Bill”, não cita, repete. Mas não interpreta, homenageia. E nada disto é forçado ou estranho. Assim como vimos aquelas botas a pisar o soalho amadeirado e fomos transportados para os westerns de Sergio Leone, viajamos facilmente até ao mundo japonês da animação.
Tarantino liga a cor e desliga-a para preto e branco (a ideia vem de um filme onde as cenas eram demasiado sangrentas). Tarantino puxa-nos da América profunda e atira-nos para os templos japoneses, onde as personagens trajam quimonos imaculados e revelam longas barbas brancas, proféticas, a esvoaçar ao vento. Tarantino mostra-nos uma caravana no deserto americano e apresenta-nos um lutador japonês que se ergue longos metros no ar durante uma luta.
E não, nada disto é estranho ou disruptivo. Há uma harmonia tão grande entre todos os capítulos das duas partes de “Kill Bill”, que não temos outra reação senão admirar a mestria com que esta história se revela diante do nosso olhar. Só podemos tentar sair do papel de espectador para conseguir notar todos os pormenores.
Falamos de pormenores como o fato amarelo à Bruce Lee que Uma Thurman usa na primeira parte da história. Ou o contraste das duas bandas sonoras, que vão dos westerns (Tarantino conseguiu usar música de Ennio Morricone no Vol. 2, onde também encontramos Johnny Cash) ao rock dos anos 1950 de Charlie Feathers (que contribui com faixas para os dois volumes), sem esquecer os tons orientais de Meiko Kaji. E, claro, o som de alerta que Tarantino pediu emprestado a Quincy Jones para o inscrever na história do cinema.
A espada afiada de Hattori Hanzo
Para chegar a O-Ren, A Noiva enfrenta a guarda pessoal da líder e o grupo que a protege, os Crazy 88. Um por um, derrota todos aqueles exímios lutadores de artes marciais naquela que Tarantino disse ser, à data, a sua melhor cena de ação. Na verdade, o realizador e argumentista propôs-se este desafio: queria fazer um verdadeiro filme de ação, com o seu selo de qualidade, para provar a si mesmo que podia ombrear com os melhores realizadores. O orgulho de Tarantino quando falava daquela cena com os Crazy 88 prova que conseguiu.
Agora num cenário imaculado branco, A Noiva defronta O-Ren. É uma adversária à altura, e Uma Thurman consegue expressar a vulnerabilidade da personagem que acaba por receber alguns golpes duros também. O golpe final é desferido pel’A Noiva, com a sua espada de samurai feita pelo mestre Hattori Hanzo (Shin'ichi Chiba), arrancando o couro cabeludo da líder japonesa e deixando à vista o interior da cabeça. E onde é que já vimos esta técnica nos guiões de Tarantino, em jeito de autorreferência?
A Noiva é temida pelos seus adversários. Sabem que ela está à procura da vingança e é com essa nota que o Volume 1 se despede. O facto de ter conseguido convencer Hanzo a sair da reforma, para lhe fazer aquela arma, torna-a ainda mais poderosa aos olhos dos vipers.
Com a espada, de um lado e a missão de vingança do outro, esta é mesmo a mulher mais perigosa do mundo – palavras que o próprio Tarantino põe na boca das personagens. Não é por acaso que, no gangue, A Noiva tinha como apelido Black Mamba, a mais perigosa de todas aquelas serpentes.
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