A vingança d’A Noiva (Uma Thurman) continua em “Kill Bill - A Vingança Vol. 2”. (2004). As duas partes foram gravadas em simultâneo e separadas para exibição nos cinemas. Não se trata, por isso, de uma sequela e custa pensar que passaram alguns meses para que o público pudesse ter completado a história da morte de Bill, quando, por aqui, passou apenas uma semana. Uma semana em que pairou no ar a última frase do primeiro filme: Bill pergunta (e só lhe ouvimos a voz) se A Noiva saberá que a sua filha está viva, que sobreviveu ao massacre dos Deadly Viper Assassination Squad e aos quatro anos em que a mãe esteve em coma.
Quentin Tarantino deixa esta frase no ar para acrescentar voracidade à sede de vingança de Uma Thurman. É verdade que a personagem revela uma serenidade muito oriental – afinal, ela estudou pacientemente com o mestre Pai Mei (Chia-Hui Liu), conquistando primeiro a sua tolerância e depois a confiança que o levou a ensinar-lhe o golpe letal que nunca partilhou com o antigo aprendiz, Bill.
Alguns capítulos deste Vol. 2 mostram-nos essa jornada, desde que Bill deixou A Noiva na montanha onde Pai Mei vive até ao fim da sua formação, passando por longos e dolorosos treinos em que lhe é ensinado a partir uma barra de madeira apenas a 10 cm de distância da sua mão.
A lista da vingança d’A Noiva continua, depois de riscar os nomes de Vernita Green (Vivica A. Fox) e O-Ren Ishii (Lucy Liu), no Vol. 1. Segue-se Budd (Michael Madsen), nome de código: Sidewinder.
Budd é irmão de Bill e aparece-nos como um alcoólico solitário, que vive sozinho numa caravana no meio do nada. Contudo, somos surpreendidos pela ingenuidade d’A Noiva, quando abre a porta da caravana e permite que Budd a desarme de imediato. Para surpresa de todos, Tarantino tira-nos já o tapete, mal começa a segunda parte. A protagonista – feita guerreira mítica, temida pelos seus inimigos – deixa-se deter e enterrar viva num caixão de madeira.
Falta-nos o ar durante aquelas cenas, em que Tarantino aperta o plano, para sufoco do espectador. Thurman está ali, numa caixa de madeira, quando a história faz um desvio para o capítulo dos ensinamentos de Pai Mei. Quando regressarmos ao caixão, vamos perceber que A Noiva parte a madeira e consegue escavar a sepultura, para regressar ao mundo dos vivos.
Budd não morre às mãos d’A Noiva, mas sim de Elle Driver (Daryl Hannah), ou California Mountain Snake. O irmão de Bill promete vender a espada Hanzo d’A Noiva à última dos Deadly Vipers. Com uma pala a tapar o olho que já não tem (em modo Bond girl), Elle Driver encontra-se com Budd e entrega-lhe uma mala com dinheiro. Para ironia da história, escondida no meio das notas está uma black mamba, que surpreende o irmão de Bill. O ataque é letal.
Quando Thurman reaparece, as duas últimas mulheres do gangue confrontam-se naquele espaço apertado, obrigando Tarantino a explorar os seus ângulos de filmagem menos convencionais. É uma cena clássica de ação mas a atenção está toda na black mamba que ainda está à solta na caravana.
A vingança serve-se finalmente com um toque daquele humor refinado de Tarantino e que os atores interpretam de forma exemplar: é que a Noiva arranca o outro olho de Elle Driver e esmaga-o com o pé descalço. Driver cai por cima dos destroços, totalmente desorientada e frenética, enquanto continua a prometer uma morte dolorosa à adversária.
A arma secreta d’A Noiva
Por fim, Bill (David Carradine). Entrámos num cenário de influência mexicana e Uma Thurman traja agora com uma saia azul, comprida, nada propícia ao kung fu e isso já nos diz que A Noiva não vai lutar. Ao entrar na casa de Bill, encontra um cenário inesperado: o antigo amante brinca com uma menina. Ela tem pouco mais de quatro anos e segura uma pistola de plástico. Refere-se à mulher como mãe e, então, A Noiva percebe que a sua filha sobreviveu. As lágrimas escorrem dos olhos muito azuis de Uma Thurman.
A segunda parte de “Kill Bill” cede uma parte do tom de ação à emoção. É mais demorada e menos ágil. Também A Noiva, cujo nome nos é revelado (Beatrix Kiddo), parece trocar a raiva pela sensatez neste último confronto. As duas personagens conversam, trocam perguntas para sarar as feridas e saciar a curiosidade dos espectadores.
Mas a paz dura pouco. Em vez de um duelo de espada, Kiddo aplica sobre Bill o golpe que aprendeu com Pai Mei – a técnica em que os dedos de uma mão dão cinco toques no coração rápidos no peito do adversário. A morte é certa e chegará em poucos minutos.
Nos dois volumes de “Kill Bill”, vemos um realizador em êxtase com o trabalho alcançado. Os detalhes deste grande filme, divido em dois, alinham-se de forma natural. O resultado é um bonito invólucro, uma mistura de géneros cinematográficos, pintados com a capacidade única de Tarantino para criar diálogo escorreito, que não distrai mas fixa e que informa sem aborrecer.
Uma Thurman tem uma presença esmagadora e os vipers revelam um carisma que torna o elenco um pedaço muito rico da história. Há uma dança eloquente entre diferentes géneros, em que o realizador honra o cinema através dos seus gostos pessoais. Tarantino não se limita a homenagear nomes e caras mas resgata mesmo glórias perdidas (David Carradine e o seu percurso passado dos filmes de ação ou a própria figura de Hattori Hanzo, figura mítica anterior a “Kill Bill”).
De resto, é fascinante ver as comparações, cena a cena, entre as duas partes de “Kill Bill” e os muitos filmes em que Tarantino se terá inspirado – por exemplo, o filme japonês “Lady Snowblood” (1973) e a sua influência na personagens de O-Ren; o filme chinês “Executioners from Shaolin” (1977), onde está o golpe mortal que A Noiva aprende; ou mesmo alguns planos dos spaghetti westerns de Leone (“O Bom, o Mau e o Vilão”, de 1967, e “Era Uma Vez no Oeste”, de 1968).
Conseguirá Quentin Tarantino continuar a surpreender em "“Era Uma Vez... em Hollywood”, o seu nono filme, que agora chega às salas de cinema? Será inesgotável essa capacidade de se inspirar na história do cinema sem cansar o espectador? Estarão Brad Pitt e Leonardo DiCaprio à altura dos atores habituais de Tarantino? (E, por falar em atores, falta dizer que Samuel L. Jackson aparece em “Kill Bill - A Vingança Vol. 2”, ele que não podia faltar e que, apesar de aparecer de costas, nos brinda com a sua voz inconfundível.) Quentin Tarantino é um homem de fórmulas testadas. “Era Uma Vez... em Hollywood” vai juntar-se com distinção ao currículo brilhante de um dos melhores realizadores e argumentistas dos nossos dias.
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