As paredes góticas da cidade belga de Bruges são porto de abrigo para Ken (Brendan Gleeson) e cárcere para Ray (Colin Farrell). Um faz-se turista, enquanto o outro se vê prisioneiro – mas os dois são assassinos ao serviço de Harry (Ralph Fiennes) neste “Em Bruges” (2008). Estão num exílio temporário enquanto aguardam instruções do patrão. Irlandeses, os dois homens vão parar àquela cidade medieval, que, assim como o guião escrito por Martin McDonagh, está impregnada de uma espiritualidade muito religiosa mas também muito filosófica.
O pano de fundo pode parecer tão pesado quanto as sombras dos edifícios históricos de Bruges. Mas este texto é leve e chega-nos com toques de humor que nos surpreendem.
Martin McDonagh é dramaturgo e “Em Bruges” foi a sua primeira longa metragem. Habituado aos recursos simples do teatro, McDonagh consegue, com grande competência, duas das marcas mais fortes do filme. Em primeiro lugar, a simplicidade dos cenários e da realização. Gravar em Bruges é, por si, ter um espaço de riqueza cinematográfica instantaneamente ao dispor. E o próprio guião mostra as duas personagens principais a encontrarem nas ruas da cidade a gravação de um filme – é aí que conhecemos Chloe (Clémence Poésy) e Jimmy (Jordan Prentice), respetivamente o interesse amoroso que faz parelha com Ray e o anão ator que se torna amigo dos dois assassínios, ambos presenças recorrentes no resto do filme.
Em segundo lugar, McDonagh bebe das suas raízes dramatúrgicas para entregar um texto que se basta a si mesmo com momentos caricatos e inocentes. Falamos de um humor simples e puro, que nos apanha desprevenidos. Estamos à espera do drama porque as composições pesarosas de Carter Burwell tocam no fundo, a sugerir-nos um enredo triste, e a direção de fotografia de Eigil Bryld dá-nos cores frias e um nevoeiro quase místico.
Ainda assim, rimo-nos com a simplicidade de cenas como aquela em que Ray tenta dissuadir uma família de americanos a subirem à torre Belfry, já que os 366 degraus seriam um desafio dado o peso dos turistas. Não é com escárnio que o irlandês se dirige aos americanos, mas estes interpretam a sua preocupação inocente como uma ofensa. O chefe da família tenta então agredir Ray, acabando a correr atrás dele em câmara lenta. Mais à frente, o guião tratará de nos informar que a torre está fechada porque um americano teve um enfarte enquanto tentava subir.
Rimo-nos também com a fineza do momento em que a dona do hotel ordena que parem com as ameaças e pousem as armas, apenas para que Harry lhe diga que aquilo é um tiroteio. Estes momentos ligeiros de humor atenuam os temas pesados de que a história fala: abuso sexual de menores, violência racial e alguma xenofobia.
Ainda assim, o humor não impede que o filme nos choque. Não esperamos que o problema que conduz os dois homens ao breve exílio seja, afinal, um trabalho que correu mal, o primeiro de Ray. A missão era assassinar um padre. Ao fazê-lo, a personagem de Colin Farrell dispara inadvertidamente sobre um rapaz que espera a sua vez para a confissão. Nas mãos, a criança segura um papel com uma lista de pecados, tão inocentes quanto “ser mau em matemática” ou “estar triste”. A inocência daquelas palavras contrasta com o sangue vermelho-vivo que agora mancha o papel. E então vemos que a bala da arma de Ray se alojou na testa do rapaz. A imagem é chocante, inesperada e impressionante, apesar de passarem só poucos segundos até que o rapaz cai no chão, inanimado.
Colin Farrell e Brendan Gleeson são a mais-valia deste filme e também aí se vê o intuito da escolha do realizador. Os dois atores fazem as cenas. Não precisam de grandes cenários ou caracterização, nem efeitos especiais. Farrell socorre-se das suas sobrancelhas espessas para acrescentar emoções à sua prestação. Ora é um assassino ingénuo, ora é um homem mergulhado na culpa. Gleeson, que se aproxima mais do estereótipo irlandês, chega de forma mais repentina à redenção, ele que já leva vários anos daqueles trabalhos a soldo para Harry. Não é tão credível essa passagem para o arrependimento, mas acreditamos porque Ken é empático, astuto e tranquilo. Entrega-se à curiosidade pela história de Bruges e fica rendido pela espiritualidade que se atravessa no seu caminho.
Um caminho onde McDonagh coloca muitas pistas visuais. No Museu de Groeninge, Ray e Ken passam por algumas obras quinhentistas e detêm-se a observar o quadro “The Last Judgement”, de Hieronymus Bosch. É o juízo final que ali está diante daqueles homens temerosos, que vêm pequenas figuras a serem devoradas por outras maiores, pecadores e redentores a tomarem o seu caminho. Quem fica no limbo, no purgatório, deseja estar morto. É isso mesmo que Ray nos diz em jeito de despedida: depois de ter sido baleado por Harry, pensou que esperava mesmo ter morrido.
Claro que o pano cai antes de sabermos se o seu desejo se concretizou ou se a narração vem do além. Mas o que é certo é que Bruges é o purgatório de Ray. O homem tenta escapar: Ken trata da fuga e coloca-o num comboio sem saber para onde vai. Mas Ray é reconhecido por um casal de canadianos que tinha agredido e o polícia envia-o de volta a Bruges. Perante a ironia da situação, Farrell diz somente “brilhante”.
A fé católica que o filme tanto retrata chamaria a isto justiça divina. Fé ou filosofia, “Em Bruges” confronta as personagens com dilemas morais. E é a força das convicções que leva Harry a tirar a própria vida, quando, depois de ter atingido Ray, julga que uma das suas balas matou um rapaz ali perto. A cena mimetiza o ponto de partida do filme, mas a verdade é que a personagem de Ralph Fiennes (tão pouco convincente como suposto vilão) atingiu Jimmy, que estava vestido com um uniforme, e não uma criança. Harry precipita-se para o suicídio porque já antes nos tinha dito que nada mais havia a fazer numa tal situação como aquela em que Ray se encontrava. Não é tão habitual nos textos dramatúrgicos ocorrerem mortes como esta?
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