“A Lista de Schindler” fez 25 anos em 2018 e Steven Spielberg afirmou ser uma altura urgente para revisitar o filme. O realizador, que ganhou os primeiros Óscares com este título, dedicou-se a esta história como se fosse uma missão moral contar como Oskar Schindler resgatou da morte 1100 judeus, durante a ocupação nazi da Polónia. “A Lista de Schindler” é um dos filmes mais indispensáveis que os 30 antes dos 30 trouxeram até agora, porque é um documento sobre como a bondade supera o ódio e a razão pode ser incapaz de compreender o preconceito.
No memorial do 11 de Setembro, em Nova Iorque, uma frase está escrita com grande destaque: “que nenhum dia te apague da memória do tempo”. Ao ver entrevistas de Steven Spielberg sobre “A Lista de Schindler” (1993), fica claro que este foi o seu propósito ao realizar o filme. Por isso demorou vários anos desde que lhe falaram da ideia até que decidiu avançar com a história. Por isso precisou de se sentir maduro e capaz de abraçar um projeto monumental como este. Por isso direcionou os ganhos que teria com o filme para uma fundação dedicada a manter viva a memória do Holocausto – a USC Shoah Foundation –, contada pelos seus sobreviventes.
Foi com os sobreviventes que este filme começou e Spielberg faz questão de nos apresentar assim que abre “A Lista de Schindler”. É atribuída a Estaline a frase que diz que uma morte é uma tragédia e a morte de um milhão de pessoas é uma estatística. Spielberg faz questão de transformar essa estatística – de 6 milhões de judeus mortos durante o Holocausto – em indivíduos. É para o conseguir que uma das primeiras sequências do filme mostra uma multidão de judeus a apresentar-se a registo. Vemos os seus rostos, ouvimo-los dizerem os seus nomes. Sabemos quem são estas pessoas e vamos acompanhar as suas histórias.
Estamos em Cracóvia, Polónia, quando conhecemos Oskar Schindler (Liam Neeson). É um alemão que pertence ao partido nazi e que entra numa sinagoga à procura de oportunidades. Quer abrir uma fábrica e procura investidores judeus que lhe permitam reunir o capital necessário. Também consegue um contabilista de peso, Itzhak Stern (Ben Kingsley), um imperturbável judeu que leva a seriedade e o empenho estampados no rosto e que será a bússola moral de Schindler ao longo desta história, que começa com a expropriação das famílias judias e o seu exílio no gueto.
Schindler aparece como um bon vivant trapaceiro. Os relatos de quem o conheceu confirmam o retrato feito no filme: era mulherengo e ambicioso e sabia cultivar relações junto de figuras influentes. Subornou muitos, manipulou outros tantos e fez fortuna a partir da guerra, quando montou o tal negócio, uma fábrica que fazia panelas e outros utensílios destinados às tropas. Liam Neeson mostra-se sorridente nesta fase da personagem e é importante o momento em que conta à mulher que finalmente percebeu aquilo que lhe faltava para alcançar sucesso – a guerra.
A frieza e o calculismo perdem-se durante o debate interno que o vemos ter. Interessam-lhe os lucros, acima de tudo. Contratar trabalhadores judeus sai muito mais barato do que ter operários polacos. A história revela a Schindler – muito por ação de Stern – que tem o dever moral de salvar aquelas pessoas da morte certa. A sua fábrica é um sítio seguro, como lhe dizem. Um sítio onde não se morre. E, afinal, aquele ódio visceral que incutiram na população era tão contranatura que a ideologia perde força quando dois seres humanos se encontram, cara a cara, e não faz sentido que se odeiem. Não faz sentido que os judeus sejam destituídos da sua condição humana, equiparados a animais. Não faz sentido.
Também Amon Göth (Ralph Fiennes) parece chegar a esta conclusão, embora por um caminho muito mais tortuoso e menos virtuoso. Göth foi um austríaco mandatado pelo regime de Hitler para tomar conta das operações em Cracóvia, chegando à história de Spielberg quando o gueto é esvaziado e os judeus são enviados para campos de trabalho. Göth era sanguinário e são vários os relatos que descrevem como matava, arbitrariamente, de arma em riste no alto da sua varanda. Fazia pontaria aos que achava que estavam a trabalhar com menos afinco. Matava sem motivo. A personalidade histórica é retratada por Ralph Fiennes como um homem instável, um apoiante da ideologia, que só se deixa vacilar nas crenças num momento. É que Göth sente-se atraído pela empregada judia e questiona-se como seria se a lei permitisse a aproximação dos dois. Ao fazê-lo, mostra que até no mais fervoroso dos nazis o ódio não é regra e que a ideia de que um povo estava abaixo de outro era difícil de interiorizar.
"A lista é vida"
A personagem de Ralph Fiennes tem apenas mais um momento de hesitação. Schindler diz-lhe que o poder não advém da capacidade de matar arbitrariamente, mas da possibilidade de matar e não o fazer. Como um perdão que um imperador concede a alguém que roubou. Göth perdoa o rapaz que não consegue tirar manchas da sua banheira. Mas rapidamente volta a si e, quando o rapaz está a atravessar o pátio, dispara sobre ele. O rapaz fica estendido no chão coberto de neve assim como o espectador fica esmagado.
São vários os momentos que nos deixam assim, porque não conseguimos distanciar-nos nunca do facto de que aquilo aconteceu assim. De resto, alguns dos elogios mais recorrentes ao filme de Spielberg é o seu tom documental, para o qual contribuiu o facto de ser praticamente filmado na íntegra a preto e branco, por escolha do realizador. Diz ele que não conheceu o Holocausto de outra forma, todas as imagens que lhe chegaram eram assim e, por isso, não podia representá-lo de maneira diferente. A cor é usada somente em alguns momentos, um dos quais nos volta a tirar o chão.
No meio da confusão gerada pelo exílio do gueto, uma menina deambula pelas ruas. Veste um casaco que o filme permite ver que é vermelho. Ninguém lhe presta atenção. Algumas pessoas correm, os soldados nazis desfilam a cumprir ordens e aquela criança escapa-se por uma porta, sem que ninguém repare nela. A cena é observada por Schindler, ao longe. Mais tarde, quando Göth manda montar uma fogueira gigante para que se desfaçam dos corpos, vemos a menina do casaco vermelho ser transportada num carro de mão, com outros corpos. Spielberg explicou esta escolha e o uso da cor vermelha. Enquanto Hitler executava milhões de judeus, os líderes americanos fecharam os olhos. Ignoraram aquele alerta vermelho (“red flag”, diz ele) e nada fizeram. A criança simboliza essa decisão e revela a visão do Holocausto do outro lado do Atlântico. O realizador abraçou este projeto de forma muito pessoal, deixou-se marcar por ele. Talvez seja por isso que o resultado foi tão verdadeiro e respeitador. E talvez por isso tenha merecido sete Óscares da Academia.
Outro momento marcante acontece quando Schindler sai da prisão (fora detido por beijar uma mulher judia) e a rua está coberta do que parece ser neve. Mas percebemos que o que paira no ar são as cinzas daquela enorme fogueira, crematório das vítimas de Göth. A cena é tão forte quanto o momento em que, no filme “O Pianista”, de Roman Polanski, soldados alemães atiram de uma janela alta o homem de cadeira-de-rodas a quem tinham ordenado que se levantasse. (Esta cena foi o motivo pelo qual não escrevi sobre o filme de Polanski porque seria difícil dizer algo sobre ela e não seria possível falar de “O Pianista” sem ela.)
Stern manteve a distância face ao "herr direktor" como se nunca se esquecesse da diferença entre eles. Quando julga ter chegado o fim da linha, aceita aquele brinde que Schindler lhe tinha oferecido algumas vezes antes. Como uma despedida e um agradecimento, por ter permitido que sobrevivesse até então.
O fim da guerra aproxima-se e os prisioneiros devem ser enviados para Auschwitz. Schindler vai subornar Göth com toda a fortuna que tem e convence-o a deixar que transporte consigo os trabalhadores da fábrica, que irá relocalizar na República Checa. Com a ajuda de Stern, cria uma lista com todos os nomes das pessoas que vai salvar, numa cena de pressa aflitiva em que fuma desesperadamente.
Schindler consegue resgatar 1100 trabalhadores, que são enviados para a sua fábrica em dois comboios. Só que o comboio que transportava as mulheres segue, erradamente, para Auschwitz. Antes que Schindler consiga desfazer o engano, as prisioneiras são conduzidas para dentro de um balneário, com chuveiros. O pânico daquelas mulheres é palpável – julgam estar dentro de uma câmara de gás até ao momento em que a água cai daqueles chuveiros. Spielberg, que contratou dezenas de atores israelitas como figurantes, diz que a gravação da cena teve momentos de pânico genuíno. E que houve sempre grande reverência nos cenários. Basta visitar um dos monumentos de homenagem às vítimas ou campos de concentração feitos museus para saber que somos assombrados por um silêncio quase automático. Mais do que o horror, é o silêncio que toma conta de nós. Não é difícil imaginar o ambiente das filmagens de “A Lista de Schindler”, sobretudo sabendo que alguns dos sobreviventes estiverem presentes e conviveram com os atores que os retrataram no filme.
Com a relocalização da fábrica, Oskar vê-se forçado a produzir material de guerra mas Stern avisa-o falência iminente, porque o material tem defeitos e é devolvido. O dono da fábrica responde-lhe que ficaria muito descontente se a sua fábrica produzisse material de guerra eficiente. Da história de Schindler, sabe-se que chegou a comprar material de guerra sem problemas no mercado negro para vendê-lo como produção própria.
Na fábrica, os trabalhadores e o patrão ouvem o anúncio do fim da guerra. Schindler diz-lhes que devem agradecer a si mesmos terem sobrevivido até àquele momento. Mas aqueles mais de mil judeus estão agradecidos ao homem que arriscou a vida para salvá-los e que chora nos braços de Stern a confessar que podia ter conseguido salvar muitos mais.
Sim, estão agradecidos e demonstram-nos como sabem. Um dos judeus permite que lhe retirem um dente de ouro, que é depois derretido e transformado em anel. Nele gravam uma frase dos seus textos sagrados: "Aquele que salva uma vida salva o mundo inteiro".
Os homens que tratam dessa oferta agradecem, um por um, com as mesmas palavras, ao homem que cedeu o ouro. A repetição tem um efeito cómico e esses momentos de leveza são intencionais no guião de Steven Zaillian (baseado de livro de Thomas Keneally).
Spielberg consegue um equilíbrio perfeito durante as mais de três horas de filme. Mostra-nos os horrores da humanidade, personificados em Göth, mas também nos explica o quão naturais conseguem ser os atos de bondade. Afasta a câmara para que continuemos a imaginar o desfecho de cenas aflitivas, mas permite-nos ver os rostos de cada um dos sobreviventes de Schindler. Provoca-nos náuseas mas também nos arranca sorrisos (como fará depois Roberto Benigni em “A Vida é Bela”, de 1997).
Numa entrevista de 2018, a propósito do 25º aniversário do filme, Spielberg e os protagonistas contam como foi difícil, emocional e psicologicamente, fazer algumas cenas. O realizador recorda que o seu amigo Robin Williams lhe ligava uma vez por semana para uma pequena sessão de stand-up ao telefone.
Descanso em paz
Steven Spielberg mantém a esperança viva. No que à gratidão diz respeito, o realizador fecha o ciclo da história ao mostrar aquelas mesmas pessoas a reportarem os seus nomes aos soldados que marcam agora o início do processo de paz. Uma morte é uma tragédia e milhões de mortos não passam a mera estatística. E as histórias daqueles sobreviventes acabam de ser contadas.
Na última sequência do filme, o realizador filma os sobreviventes de Schindler e as suas famílias a visitarem o túmulo do homem que os salvou, com os atores do filme. Momentos antes, Bem Kingsley, na pele de Itzhak Stern, tinha dito a Schindler que várias gerações viveriam por causa do que ele fizera. E ali estão essas gerações.
Nesta parte final, a cor voltou ao ecrã mas o espírito documental não se perdeu. Cada um dos visitantes, deposita uma pedra sobre o túmulo de Schindler (que morreu em 1974). Na cultura judaica, uma das explicações deste ato diz que as pedras ajudariam a alma a permanecer no seu túmulo, uma maneira de garantir que aquela pessoa encontraria o descanso e a paz.
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