Em “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” e “The Revenant: O Renascido”, Alejandro G. Iñarritu conta histórias de pessoas em circunstâncias excecionais das suas vidas. O realizador traz essas histórias no meio de Hollywood, com a escala dos grandes sucessos de bilheteira mas uma identidade muito própria. Ver “21 Gramas” (2003) depois de conhecer Iñarritu como um realizador já consagrado é olhar mais fundo para a origem desse caminho. E, na origem, está a vontade de contar histórias de pessoas em circunstâncias excecionais.
Num dos primeiros momentos de “21 Gramas”, ouvimos a voz grave de Benicio Del Toro. O seu tom não revela muito, mas a frase que nos fica no ouvido imediatamente aguça a curiosidade. “The guilt will suck you down to the bone.” A culpa há de consumir-te.
Noutro momento inicial do filme, Sean Penn está sentado, nu, sobre a cama onde dorme Naomi Watts. O cabelo cai-lhe sobre os olhos, os olhos cheios de angústia, disfarçada pelo fumo do cigarro. Estamos em silêncio.
A frase de Benicio Del Toro é a pista mais explícita para compreendermos o percurso da sua personagem, mas ainda não sabemos. E quando se puxa mais um pouco do novelo, o filme mostra-nos um tempo em que Naomi Watts e Sean Penn não contracenam, porque as suas personagens ainda não se conhecem.
Benicio Del Toro é Jack Jordan, um ex-condenado por diversos problemas com a justiça, que encontrou na religião a cura para o seu comportamento. Numa devoção quase obsessiva, faz sua a missão de ajudar um rapaz em cujos comportamentos revê o seu passado. É verdade que Jack limita muitos dos seus diálogos a citações bíblicas e lições de moral religiosa, mas esse é um traço da personagem – mais uma pista – e o discurso não a torna exagerada ou caricata.
Naomi Watts é Cristina, que consumia drogas antes de casar com Michael (Danny Huston) e ter as duas filhas pequenas, loiras, que vemos em momentos carinhosos com a mãe. O riso impera nessas cenas e questionamo-nos por que o guião prescinde da presença do pai para compor o cenário.
Paul Rivers (Sean Penn) é um professor de matemática que espera por um transplante de coração para poder viver. Mary (Charlotte Gainsbourg) é a sua mulher, que cuida dele no que poderá ser o fim da sua vida e que recorre a uma clínica de fertilidade para engravidar do marido.
Guillermo Arriaga, que escreveu esta história estupenda, vai discorrendo vários momentos nas vidas destas três pessoas e dos universos que são as suas famílias e amigos. A Iñarritu coube trazer esse guião à vida sem quebrar a harmonia narrativa que une a história. O desafio é grande e era, em 2003, ainda um terreno pouco explorado: Arriaga e Iñarritu não seguem uma narrativa linear. Juntos, destroem por completo a noção de passagem do tempo ao dar-nos apenas alguns quadros desordenados na cronologia das personagens. E, assim, garantem que nos surpreendemos até ao último momento – quando a culpa de Jack, o desespero de Cristina e a angustia de Paul se encontram finalmente, numa catarse muito antecipada.
É só quando os diferentes acontecimentos começam a alinhar-se à nossa frente, quase no final do filme, que conseguimos juntar as peças e essa é uma experiência cinematográfica profundamente compensadora. Mas não é só à história que o devemos.
Benicio Del Toro, Naomi Watts e Sean Penn revelam, em “21 Gramas”, a grandeza das suas capacidades como atores. Del Toro é o espelho de uma culpa ardente que corrói por dentro. Naomi Watts consegue interligar as fases da vida de Cristina sem qualquer quebra de sentido, ela que foi uma viciada em drogas, passando a ser mãe e depois viúva. E basta um olhar para a cara de Sean Penn para perceber que desistiu de viver e que, tendo-lhe sido dada uma segunda oportunidade, descarta-a perante a angústia de saber que outra pessoa morreu para que ele pudesse viver.
Alejandro G. Iñarritu disse, numa entrevista, que espera ter feito um filme mais emocional do que intelectual, porque odeia a arte que é fria. Não há dúvidas de que conseguiu, seja pela sua direção do elenco de protagonistas, seja por lhes ter dado o espaço para se encontrarem com as suas personagens no seu próprio ritmo e espaço.
A verdade é que sentimos tudo, neste filme (e desde muito cedo nas duas horas que ele tem). Sentimos o aperto no peito sempre que ouvimos o assobiar na respiração periclitante de Paul, e extraímos daí que está a aproximar-se do limite do seu tempo de espera por um novo coração.
Sentimos o sufoco de Cristina ao receber a notícia do que aconteceu ao marido e às filhas, uma mãe que, de repente, já não o é.
Sentimos a raiva de Cristina quando expulsa Paul de sua casa, depois de saber quem ele é e porque é que a procurou.
Sentimos a tristeza desoladora de Paul ao encontrar, num livro, as duas únicas fotos de Cristina com Michael e, ainda por cima, estão felizes e a sorrir – e não é inócuo o momento em que o realizador e o guionista decidiram revelar esta imagem.
Sentimos a pele a arder quando Jack aquece uma faca com um isqueiro e queima o próprio braço, justamente no sítio onde tem uma cruz tatuada – e ele que estremece tão pouco.
Sentimos uma enorme empatia para com ele. Jack seria o vilão desta história, mas, quando o conhecemos, já é um homem redimido que se dedica a expiar os seus erros através de boas ações. Não conseguimos culpá-lo, enquanto vemos que a culpa o está a correr por dentro.
Quanto cabe em 21 gramas?
Não, esta não é arte racional ou fria. Mas também não nos perdemos num mar de emoções, porque ali está Iñarritu sempre a interromper-nos o mergulho com mais um flashback (ou será um flash-forward?). As viagens no tempo conseguem prender-nos a atenção, mais do que nos distraem. Afinal, estamos ali para descobrir como é que as vidas de Jack, Cristina e Paul estão ligadas e como se influenciaram entre si.
Guarde-se o spoiler, não porque “21 Gramas” perca qualidade sem o fator surpresa. Mas a história merece. Merece, porque consegue surpreender-nos até ao último momento, quando achamos saber tudo sobre “21 Gramas” e, inclusivamente, a razão de ser deste título. E eis que somos confrontados com o peso da alma.
Uma história sobre pessoas não é, à partida, a sinopse mais entusiasmante. Mas o que é acontece a estas três personagens é tão plausível de nos bater à porta, que nos identificamos imediatamente com elas – Guillermo Arriaga terá tido a ideia para este guião depois de passar por um acidente rodoviário grave e a pergunta que se fez, de certeza, que também já nos assombrou.
Além disso, percebemos aqui que Iñarritu é mesmo um contador de histórias de pessoas e, fazendo-o de forma magistral, merece-nos toda a atenção. Assim como as histórias de Richard Linklater parecem retratos muito familiares, também Iñarritu ganhou o galardão de biógrafo de vidas modernas, contador de histórias com dramas reais. A diferença é justamente essa. Iñarritu prefere os dramas. A Linkater interessam-lhe mais os momentos bonitos da vida.
Curioso é ver que, mesmo assim, Iñarritu descreveu esta história como tendo um elemento forte de esperança. O final justifica-o, mas não é esperança aquilo que está estampado nos rostos (tão novos!) de Benicio Del Toro, Naomi Watts e Sean Penn.
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